Essa turma de patriotas é aquela que busca confundir a população quanto à diferença elementar entre liberdade de expressão e liberdade para cometer crimes
Tenho lido alguns textos e comentários em redes sociais que afirmam que o Brasil vive uma ditadura e, pior, uma “ditadura comunista”. Os propagadores da ideia acusam o governo Lula de ser o operador desse regime, em conluio com o STF. A prisão dos golpistas do 8 de janeiro de 2023, o inquérito das fake news e a suspensão do X no Brasil, capitaneados pelo ministro Alexandre de Moraes, seriam provas cabais da afirmação..
De partida, é preciso lembrar que a maioria da população brasileira desconhece total ou parcialmente o tema “comunismo”. Pesquisas de opinião têm pipocado por aí confirmando isso. A simples comparação de qualquer governo brasileiro no decorrer da história com uma ditadura comunista já é disparatada, pois a expressão constitui um paradoxo. Em poucas palavras, numa sociedade comunista não haveria diferenças de classe, e os próprios cidadãos se organizariam em um autogoverno, sendo, portanto, desnecessária a existência do Estado. Vale notar que o marxismo é a teoria mais consagrada do comunismo, mas não a única. Quem acredita no mito da “ditadura comunista”, deve ter matado muita aula de História e Sociologia, ou acredita que aprendeu algo genuíno com os meios de comunicação da burguesia, inimigos viscerais do comunismo.
Passaria longo tempo aqui para explicar as distinções básicas entre comunismo, socialismo, anarquismo, social-democracia etc, dada a quantidade absurda de falsificações difundidas desde meados do século XIX. Porém, o objetivo do texto não é esse. Quero falar das presepadas recentes dos neofascistas brasileiros: os bolsonaristas ou, para usar um eufemismo da moda, a extrema-direita.
A tal extrema-direita acampou durante meses na frente dos quartéis país afora, sob a benção das Forças Armadas e o patrocínio da burguesia nacional. Num belo dia de janeiro de 2023, decidiram invadir e vandalizar os prédios dos Três Poderes, a fim de provocar uma intervenção militar que desferisse um golpe de Estado contra o governo recém-eleito. Ela é comprovadamente responsável pela difusão em massa de grande parte da desinformação que circula na internet sobre personalidades, autoridades, instituições, sistema eleitoral etc. E conta com a cumplicidade insofismável dos oligopólios mundiais de tecnologia (Google, Meta, X), que não coíbem pra valer os crimes que fervilham nos seus canais de informação e comunicação. Em nome, claro, do próprio lucro. Essa extrema-direita se julga vítima de uma conspiração da ditadura comunista do Lula, do STF, da Globolixo e de sei lá mais quem.
Aí entra na história o novo paladino da liberdade para os patriotas: o magnata estadunidense Elon Musk, proprietário do X. O cara desobedeceu às ordens judiciais de um ministro do STF reiteradas vezes. Alexandre de Moraes cometeu abusos em algumas decisões? Tudo indica que sim, segundo gente da área. Aliás, não é de hoje que o STF parece ter saído da casinha. De qualquer modo, não causa espanto ver patriotas venerando um bilionário estrangeiro que desafia a soberania nacional? Até onde se sabe, Elon Musk não costuma praticar as mesmas estripulias em outros países. Logo, o apreço que demonstra pela democracia brasileira é tão grande quanto a que ele tem pela democracia da Bolívia, onde a abundância de lítio o leva a apoiar sucessivos golpes de Estado.
Ora, é de conhecimento público que a legislação brasileira prevê os crimes de injúria, calúnia, difamação, atentado contra a ordem constitucional, desobediência a ordens judiciais. Crimes que são punidos em qualquer país soberano. Tanto faz se são cometidos nas ruas ou nas redes, continuam sendo crimes. Gostemos ou não das leis do país, concordemos ou não, elas são tacitamente referendadas pelo povo quando aprovadas por seus representantes eleitos. Para mudá-las pela base, deve haver, no mínimo, mobilização popular, ações judiciais e voto consciente. Tudo isso subordinado aos limites estreitos da lei. Quem as infringe, por mais justificável que seja o motivo, é passível de punição. Nas revoluções e contrarrevoluções da história, os derrotados sempre acabam pagando de alguma forma por seus atos. Evidente que a lei sempre pesa mais sobre os marginalizados da sociedade. Afinal, os ricos controlam direta e indiretamente as instituições da democracia burguesa (plutocracia?), os meios de comunicação de massa e as empresas em geral. Muito raramente são penalizados. No entanto, de direita ou esquerda, rico ou pobre, cada cidadão assume um risco quando a transgride e pode arcar com as consequências. Dessa vez pelo menos, os que estão hoje no topo do Executivo e do Judiciário resolveram levantar a bunda da cadeira e aplicar a legislação do país contra uma extrema-direita que vinha gozando de confortável impunidade nos últimos anos.
Essa turma de patriotas é aquela que busca confundir a população quanto à diferença elementar entre liberdade de expressão e liberdade para cometer crimes. A mesma que repete aos quatro ventos o evangelho cristão, mas persegue um padre por distribuir comida aos famintos e pregar sobre justiça social, igualdade e solidariedade. São os cidadãos de bem que desejam a morte de bandidos e defendem anistia e direitos humanos para outros bandidos, amigos seus. A turma que se diz defensora da vida, mas minimiza a tragédia dos 700 mil falecidos por covid no Brasil e dos 40 mil palestinos mortos em Gaza até agora, como se apenas as vítimas de guerra ucranianas e israelenses tivessem valor. Os paladinos da liberdade não aceitam dar à mulher a liberdade de decidir sobre seu próprio corpo, sobre abortar ou não se necessário. Não querem conceder aos maconheiros a liberdade de fumar seus cigarrinhos, fingindo ignorar que existem drogas lícitas bem mais perigosas que a maconha. Discriminam pessoas por questões de gênero, orientação sexual, cor da pele, religião, nacionalidade e, não raro, apelam à violência para impor seus valores e crenças. Idolatram torturadores e enaltecem a ditadura militar em nome da liberdade. Imagine só esse pessoal em uma ditadura clássica, passando pelo pau de arara, sofrendo choques elétricos, sendo torturados e assassinados em porões de delegacias, seus corpos enterrados em qualquer lugar, constando como desaparecidos para os familiares. Pois é, berram por aí que lutam pelas liberdades democráticas, mas ignoram que essas mesmas liberdades fazem parte do rol de direitos humanos fundamentais que tanto desprezam. Dizem lutar contra o sistema e glorificam o capitalismo, sem jamais compreender que o sistema que oprime a maioria trabalhadora do país é o próprio sistema capitalista.
Claro que nem todo bolsonarista aprova ou desaprova tais absurdos. Este texto é só uma grande provocação. A esquerda também se esmera em seus erros, contradições e correntes que mal se entendem entre si. As teorias se transformam com a dialética da vida, é natural. Simplificando as coisas, termino com algumas dicas infalíveis para não espalhar bobagem por aí. Primeiro, STF, Globo, Veja, Folha de São Paulo, Estadão etc. não são comunistas. Basta recordar que contribuíram para a prisão do Lula e o impeachment da Dilma. O governo Lula também não é comunista, no máximo, uma tentativa de social-democracia. Democracia e ditadura são conceitos relativos, que se diferenciam conforme a época e a sociedade, em maior ou menor grau. Mas é fato que ambas possuem restrições ao exercício absoluto das liberdades civis. Por último, e talvez o mais importante, se quiser fontes confiáveis para falar sobre teorias, leia os autores delas ou especialistas de diferentes cores ideológicas, com o intuito de fundamentar uma opinião pessoal qualquer. Caso contrário, reflita bem sobre o mal que pode causar antes de compartilhar uma desinformação.
(*) Eduardo Siqueira: servidor municipal, graduado em Letras e especializado em História pela UEM, estudante de Sociologia. Já atuou como membro do Conselho Municipal de Assistência Social (Comas), dirigente do Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Maringá (Sismmar) e do Partido Comunista do Brasil – PCdoB Maringá
Foto: Arte s/ foto de New Mexico Museum of Space History