Finados ou renascidos?
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Se a gente raciocinasse mais sensatamente, concluiria que os cuidados com a higiene espiritual deveriam começar bem cedo
“Quando a Indesejada das gentes chegar / (Não sei se dura ou caroável), / talvez eu tenha medo. / Talvez sorria, ou diga: / – Alô, iniludível! / O meu dia foi bom, pode a noite descer. / (A noite com os seus sortilégios.) / Encontrará lavrado o campo, a casa limpa, / a mesa posta, / com cada coisa em seu lugar”.
Esse bonito poema foi escrito em meados do século passado pelo bom Manuel, o poetíssimo Bandeira. Ele morreu com 82 anos; porém, em decorrência dos seus debilitados pulmões, desde a juventude lidou com a expectativa de a qualquer instante ser levado pela “indesejada das gentes”. Daí a razão de estar sempre com o alerta ligado, pronto para encarar sem pânico a “iniludível”.
Os versos de Bandeira vieram-me à lembrança a propósito do feriado do próximo sábado, 2 de novembro, inadequadamente conhecido como “dia dos Finados”. Finados seriam aqueles que já finaram, findaram, encerraram sua existência, o que não é o caso. Segundo creem mais de 90 por cento das pessoas, a vida não termina no momento em que o espírito se separa do corpo visível. A matéria volta ao pó, o espírito continua infinitamente vivo. Mais correto seria então renomear a data como “dia dos Renascidos”.
O problema é que a gente sabe disso, porém não leva suficientemente a sério. Em geral concentramos a atenção na etapa provisória da vida, buscando meios para garantir boa saúde física e boa formação profissional, todavia raramente pensamos na importância da preparação para a eternidade.
Se a gente raciocinasse mais sensatamente, concluiria que os cuidados com a higiene espiritual deveriam começar bem cedo. Família, escola e igrejas poderiam realizar um ótimo trabalho se conseguissem unir esforços visando à formação de pessoas melhores, as quais, por serem melhores, ao final da presente jornada teriam maiores chances de iniciar de imediato, serenamente, a etapa definitiva da existência.
Imagine que alívio e que alegria, naquele inefável instante do renascimento, poder dizer ao Pai: “O meu dia foi bom, pode a noite descer. / Encontrará lavrado o campo, / a casa limpa, / a mesa posta, / com cada coisa em seu lugar”.
Terminar a peregrinação terrena com a certeza de jamais ter feito nada de mal e de haver usado os seus talentos somente para o bem. Renascer com a alma em paz, a consciência sem nenhum remorso, o coração limpinho. Que maravilha chegar ao céu levinho-levinho e já na porta ouvir dos anjos: – Bem-vindo, irmão, a casa é sua!
(Crônica publicada na edição de hoje do Jornal do Povo)
Foto: Pixabay