Inconcluso…

Ela começou a dizer com intensa mágoa na voz sofrida que a dor pelo desaparecimento do marido e pai dos cinco filhos dela feria mais do que uma tomada de conhecimento da morte dele

Mas em 1974, eu era apenas um jovem professor, casado com a Clarice e pai de um casal de filhos: Joseane e Vinícius Tadeu que, embora fosse contemplado por ligações telefônicas anônimas, ameaçando-me a integridade física, caso insistisse em “tumultuar o magistério paranaense”, nem de longe imaginava que estava sendo acompanhado pela Dops (Delegacia de Ordem Política e Social).

Muitos anos mais tarde, é que tomei conhecimento de que o meu nome foi lembrado pela violentíssima Dops, sinônimo de prisão, torturas, assassinatos ou desaparecimentos de milhares de vítimas do Serviço Nacional de Informações, incansável em aterrorizar supostos comunistas. A propósito, nem mesmo religiosos livravam-se de perseguições, a exemplo dos dominicanos ou beneditinos que, segundo o “comando de caça aos comunistas”, protegiam no interior das paredes dos conventos jovens marcados para morrer e que por eles eram recepcionados para a fuga geralmente a países como o Chile ou a França.

De minha parte, em meus discursos à assembleia de professores, eu sempre lembrava de “cumprimentar também os espiões do governo militar infiltrados junto às professoras e professores, covardes delatores a serviço da mais cruel ditadura da história do Brasil. Talvez por isso é que mais tarde um zeloso pesquisador informou- me que eu fazia parte da tabela de terror da Dops/Paraná:

Nome:José Tadeu Bento França;
Crime: agitador da classe dos professores;
Materialista?
Foi visto, fazendo o sinal da cruz em frente à catedral de Maringá;
Comunista?
INCONCLUSO.
1987.

Durante a Assembleia Nacional Constituinte, eu viria a conhecer pessoalmente a senhora Eunice Paiva, esposa do ex-deputado federal desaparecido Rubens Paiva, hoje lembrado por um busto nas dependências do Congresso Nacional. A chegada dela coincidiu com o momento em que o presidente Ulysses Guimarães convocava os parlamentares:

– Senhores constituintes que ainda se encontram em seus gabinetes, compareçam ao plenário para o início das votações. Vamos votar.

Silenciosamente, a senhora Eunice Paiva aproximou- se da mesa do presidente. Ao reconhecê-la, o presidente Ulysses Guimarães cumprimentou- a e a convidou a usar a palavra pelo mesmo microfone usado no passado pelo marido deputado federal, para posicionar-se contra o golpe militar de 1964, que havia deposto o presidente João Goulart.

Ela não chorava, mas começou a dizer com intensa mágoa na voz sofrida, que a dor pelo desaparecimento do marido e pai dos cinco filhos dela, feria mais do que uma tomada de conhecimento da morte dele. Não sei se os constituintes podem ajudar a descobrir, mesmo que sejam os restos mortais de meu marido, mas eu preciso dar uma explicação para os meus filhos. Ele foi deputado federal nesta Casa em 1963 e 1964. Logo após a cassação do mandato parlamentar, seis homens invadiram a nossa casa e sequestraram o pai de meus filhos. É por isso que, enquanto Deus me der vida não deixarei jamais de procurá-lo.

O que fazer ante a crueldade e a violência dos torturadores?, pensei. Somente muitos anos mais tarde, em 2014, é que o ex-major Raimundo Ronaldo Campos admitiu que, após espancamentos e torturas de toda espécie, havia ocorrido o assassinato do ex-deputado federal Rubens Beyrodt Paiva.

Os mártires de ontem não podem ser olvidados. Finalmente, que os “Inconclusos”, hoje de cabelos brancos, estejam à altura de banir toda e qualquer iniciativa de excluir de nossa história o martírio de nossos inocentes.


(*) Tadeu França
ex-deputado federal constituinte

Foto: Reprodução