Crítica ao artigo de Bolsonaro

Durante seu governo, Bolsonaro demonizou jornalistas e veículos de comunicação, mas, ao sair do cargo, percebeu que precisa dessa mesma imprensa para se fazer ouvir

A publicação de um artigo de opinião assinado por Jair Bolsonaro na Folha de S.Paulo é emblemática por diversos motivos. Trata-se do mesmo jornal que, ao longo de seus mandatos e campanhas, foi alvo de ataques constantes, acusado de ser um propagador de “fake news” e de agir como um “panfleto ideológico”. Bolsonaro chegou a afirmar, em 2019, que a Folha não merecia respeito e que, caso dependesse dele, o governo não contrataria assinaturas do periódico. Diante disso, utilizar o espaço editorial deste veículo para defender a democracia e criticar seus adversários soa, no mínimo, contraditório.

É difícil não questionar a sinceridade desse gesto. Bolsonaro sempre se apresentou como um líder que confrontava as elites e os “grandes jornais”. Ele fomentou a desconfiança na imprensa, incentivou a desinformação ao impulsionar narrativas paralelas e usou a mídia independente como inimiga conveniente em seu discurso populista. Então, por que agora, fora do poder, ele decide recorrer à mesma instituição que tanto tentou descredibilizar?

O artigo, intitulado “Aceitem a democracia”, tem um tom conciliador, mas ao mesmo tempo busca reposicionar sua imagem em um momento em que ele enfrenta crescentes dificuldades políticas e jurídicas. A mensagem de defesa da democracia pode parecer um aceno à moderação, mas também carrega um subtexto claro de vitimização e tentativa de reforçar sua narrativa para o público. Ao longo do texto, Bolsonaro tenta reconstruir a figura de estadista, o que contrasta com os anos de polarização e ataques promovidos por ele.

Essa contradição entre discurso e prática não passou despercebida. Jornalistas e críticos apontaram a ironia de alguém que, durante anos, atacou a liberdade de imprensa, agora usar um veículo tradicional para se comunicar. Cristina Serra, renomada jornalista, classificou a publicação como “um prenúncio de algo grave”, enquanto Janio de Freitas chamou o ato de “cinismo”. Ambos os comentários refletem a perplexidade de ver a Folha — uma das maiores defensoras da liberdade de expressão no país — concedendo espaço a quem tanto a vilipendiou.

Além disso, é importante lembrar que essa reaproximação com a imprensa não é um gesto isolado. Fora do poder, Bolsonaro enfrenta desafios políticos e legais que colocam em risco seu capital político. Ele está inelegível até 2030, e seu grupo político, o bolsonarismo – do qual já fiz parte, luta para se reorganizar e manter relevância. Em momentos como este, o ex-presidente sabe que precisa ocupar espaços de influência para não ser esquecido. Assim, o artigo na Folha pode ser visto como um movimento estratégico, uma tentativa de usar os meios tradicionais para manter-se na pauta política.

Essa postura também revela algo maior: o uso oportunista da imprensa por figuras públicas. Durante seu governo, Bolsonaro demonizou jornalistas e veículos de comunicação, mas, ao sair do cargo, percebeu que precisa dessa mesma imprensa para se fazer ouvir. Isso levanta uma questão importante sobre os limites da liberdade editorial. Até que ponto é válido dar voz a alguém que, quando no poder, agiu para restringir essa mesma liberdade?

Outro ponto a ser destacado é o impacto desse tipo de publicação na relação de Bolsonaro com seus apoiadores. O bolsonarismo mais radical sempre viu a grande imprensa como inimiga e, muitas vezes, seguiu cegamente os discursos do ex-presidente contra os veículos tradicionais. Como esses seguidores irão reagir ao ver Bolsonaro escrevendo justamente para a Folha de S.Paulo? Haverá um racha entre os mais moderados e os mais extremistas de sua base? Ou será que ele conseguirá transformar essa contradição em mais uma oportunidade de reforçar seu discurso de que “todos precisam ouvi-lo”?

No fim das contas, a publicação desse artigo expõe o jogo pragmático da política e da comunicação. Bolsonaro, que um dia rejeitou a imprensa, agora precisa dela. A Folha, que sempre se posicionou contra os ataques à democracia, decide publicar o texto de alguém que, segundo críticos, enfraqueceu essas instituições. Isso abre espaço para reflexões importantes sobre os papéis da imprensa, da política e da responsabilidade que ambos têm na construção de uma sociedade mais consciente e democrática.

Enquanto Bolsonaro tenta redefinir sua imagem e recuperar relevância, cabe à sociedade observar se este gesto marca uma verdadeira mudança de postura ou apenas mais um ato de oportunismo político. A história dirá se este capítulo será lembrado como um momento de maturidade democrática ou apenas como mais uma página de contradições e conveniências.

O título dessa coluna de opinião não deixa dúvidas: aqui eu tenho voz nessa bagaça. Como alguém que já foi militante bolsonarista, confesso que acho muito mais estranha essa reaproximação do Bolsonaro com a imprensa do que qualquer tentativa da imprensa em se aproximar dele. Afinal, quem mudou o jogo aqui não parece ser o jogador, mas o palco onde ele quer brilhar.


(*) Kim Rafael é advogado em Maringá. Publicado originalmente no RCC News.

Foto:Tânia Rêgo/Agência Brasil