O melhor lugar do Brasil para se viver
Gostaria de me sentir em casa novamente em Maringá, reconstruir minhas pontes de afeto, me sentir seguro de novo em relação à amizade de velhos conhecidos, que hoje parecem pertencer a uma verdadeira seita
Por VICENTE RUIVO RODRIGUES DOS ANJOS
Tem sido cada vez mais frequente, nos últimos anos, artigos em órgãos de imprensa, notícias em jornais, informes publicitários, matérias em portais de internet e conteúdo de todo tipo imaginável, inclusive de origem duvidosa, nos dando conta de que Maringá, a Cidade Canção, é o melhor lugar do Brasil para se viver. Desconfie.
Por trás dessas iniciativas pode estar a mão invisível do mercado, e não há nada de ilegal, imoral, errado ou estranho nisso. Lustrar a imagem de um produto, como a nossa cidade, interessa ao mercado imobiliário (compra, venda, locação, financiamento, consórcio, especulação, etc.), e à indústria do turismo; atrai inúmeros investimentos externos; consolida-nos como polo nas áreas de educação e saúde, entre muitos outros benefícios facilmente perceptíveis.
Assim como é perceptível, a olho nu, que se vive muito bem em Maringá, ouso dizer, desde a formação da cidade, época em que a falta de conforto e de recursos era sobejamente compensada pela abundância de oportunidades, embora não para todas as pessoas, evidentemente, porque não somos uma ilha da fantasia e repercutimos aqui, minimamente mitigadas, as abissais desigualdades sociais que assolam o Brasil desde sempre, mais evidentes em outras regiões.
Meu pai, mineiro de nascimento, chegou a Maringá em 1950, depois de breves passagens por Araruva (hoje Marilândia do Sul) e Califórnia. Aqui se estabeleceu e formou sua família. Decorrência dessa escolha, aqui nasci, em 1962. Em Maringá, obtive toda a minha formação educacional e iniciei minha trajetória profissional. Aqui me casei, formei minha própria família e dei estudo a meus filhos. Depois de cumprir a jornada de trabalho que me cabia em outras paragens, aposentei-me e decidi que esta cidade seria um bom lugar para eu desaparecer em cinzas, quando for chegada a hora, razão pela qual aqui me encontro, repetindo a escolha de meu pai.
Digo todas essas coisas para deixar claro que não há, de minha parte, nenhuma prevenção contra a cidade que aprendi a amar desde os primeiros dias da minha vida; nenhuma animosidade, ira ou insatisfação mal resolvidas na proposta de desconfiar dos reiterados anúncios de bem-aventuranças, próprias apenas do Paraíso, que formulei logo no início do artigo, mas um convite a analisarmos, com sobriedade e isenção, o que implica, em contrapartida, esse lustro que nos é permanentemente concedido, não de forma gratuita. Para saber se o brilho é merecido, primeiramente, temos que ter em mãos dados confiáveis, um trabalho sério, respeitável, que nos dê o Norte. Ao trabalho…
O Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), em parceria com a Fundación Avina, a Amazônia 2030, a Anattá Pesquisa e Desenvolvimento, o Centro de Empreendedorismo da Amazônia e o Social Progress Imperative, divulgou, em julho de 2024, o primeiro relatório do Índice de Progresso Social do Brasil (IPS Brasil), que mede a qualidade de vida nos 5.570 municípios brasileiros, nas 26 unidades federativas e no Distrito Federal.
Este índice global é publicado anualmente desde 2014, em 170 países, e as informações a respeito dele, tal como a metodologia científica empregada, por exemplo, podem ser obtidas aqui e aqui:
O IPS Brasil utilizou 52 indicadores de órgãos oficiais e de institutos de pesquisa, como o DataSUS, Conselho Nacional de Justiça, MapBiomas, Anatel e CadÚnico, para definir três dimensões principais a serem analisadas:
■ Necessidades Humanas Básicas
■ Fundamentos para o Bem-Estar
■ Oportunidades
Cada uma dessas dimensões possui quatro componentes, avaliados segundo indicadores que podem ter pesos diferentes na análise, de acordo com o tipo de dados auferidos.
Na dimensão das Necessidades Humanas Básicas, as componentes avaliadas foram:
■ Nutrição e cuidados médicos básicos;
■ Água e saneamento;
■ Moradia;
■ Segurança pessoal.
Na dimensão dos Fundamentos para o Bem-Estar, as componentes avaliadas foram:
■ Acesso ao conhecimento básico;
■ Acesso à informação e comunicação;
■ Saúde e bem-estar;
■ Qualidade do meio-ambiente.
Na dimensão das Oportunidades, as componentes avaliadas foram:
■ Direitos individuais;
■ Liberdades individuais e de escolha;
■ Inclusão social;
■ Acesso à educação superior.
Os indicadores para a avaliação de cada componente do IPS Brasil 2024 foram previamente definidos e são todos mensuráveis, a exemplo dos que vão listados abaixo, a título de ilustração, apenas para termos uma ideia da abrangência e da seriedade do trabalho, isento de orientação política partidária, ideologia, ou qualquer interferência externa que pudessem mascarar, distorcer ou macular os resultados obtidos. Eis alguns deles:
Nutrição e cuidados médicos básicos:
■ Cobertura vacinal;
■ Mortalidade infantil até 5 anos;
■ Subnutrição.
Água e saneamento:
■ Abastecimento de água via rede de distribuição;
■ Esgotamento sanitário adequado;
■ Índice de abastecimento de água.
Moradia:
■ Domicílios com coleta de resíduos adequada;
■ Domicílios com iluminação elétrica adequada.
Segurança Pessoal:
■ Assassinatos de jovens;
■ Assassinatos de mulheres;
■ Mortes por acidentes de transporte.
Acesso ao conhecimento básico:
■ Abandono no ensino fundamental;
■ Ideb do ensino fundamental;
■ Reprovação escolar no ensino fundamental;
■ Abandono no ensino médio;
■ Evasão no ensino médio;
■ Distorção idade/série no ensino médio.
Acesso à informação e comunicação:
■ Cobertura de internet móvel;
■ Qualidade de internet móvel;
■ Densidade de telefonia móvel.
Saúde e bem-estar:
■ Expectativa de vida;
■ Mortalidade entre 15 e 50 anos;
■ Obesidade;
■ Suicídios.
Qualidade do meio-ambiente:
■ Áreas verdes urbanas;
■ Emissões de CO2 por habitante;
■ Focos de calor;
■ Supressão de vegetação primária e secundária.
Direitos individuais:
■ Acesso a “Programas de Direitos Humanos”;
■ Existência de “Ações para Direitos de Minorias”.
Liberdades individuais e de escolhas:
■ Acesso a lazer, cultura e esporte;
■ Gravidez na adolescência;
■ Praças e parques em áreas urbanas;
■ Trabalho infantil.
Inclusão social:
■ Paridade de gênero na Câmara Municipal;
■ Paridade de negros e pardos na Câmara Municipal;
■ Violência contra indígenas;
■ Violência contra mulheres;
■ Violência contra negros.
Acesso a educação superior:
■ Empregados com ensino superior;
■ Mulheres empregadas com ensino superior;
■ Nota média no Enem.
Com toda essa pluralidade de indicadores, em componentes tão diversos, de dimensões absolutamente imprescindíveis para a aferição da qualidade de vida em padrões internacionais, é plausível considerar que o trabalho final obtido no Brasil, de fôlego, merece os atributos da confiabilidade, da precisão e da isenção, razões pelas quais muito mais ainda nos orgulha saber que Maringá obteve a honorabilíssima 1ª posição entre as cidades paranaenses, e a 15ª posição a nível nacional, entre os 5.570 municípios brasileiros, obtendo uma nota média de 69,96, para uma máxima possível de 100.
Ainda mais surpreendente é o fato de que, entre as 14 cidades que nos superaram, apenas duas são mais populosas: Brasília e Goiânia; quatro são de porte médio: São Carlos, Indaiatuba, Araraquara e São Caetano do Sul; duas são pequenas: Jaguariúna e Pompéia; e as demais são minúsculas cidades próximas a polos maiores, que lhes emprestam recursos benfazejos em todas as áreas primordiais, sem lhes cobrar os ônus da conturbação dos grandes centros urbanos. Estamos de parabéns!
De alma leve e lavada, retomemos, então, a ideia da contrapartida a que me referi no início do texto. Um lugar assim tão maravilhoso merece ser habitado por pessoas igualmente maravilhosas, ou não? E quem somos nós, os maringaenses, moradores da melhor cidade para se viver no Paraná, habitantes da 15ª melhor cidade para se viver no Brasil, entre outras 5.570 cidades, mas, acima de tudo, cidadãos do mundo, do Planeta Terra, que nos abriga a todos e está pedindo socorro, reflexão e mudança de postura, frente a tanta desigualdade, tanta vulnerabilidade de uns e privilégios de outros.
Talvez Maringá seja o melhor lugar do mundo para se viver para mim, para você que está lendo esse artigo, para boa parte das cerca de 410.000 pessoas que têm domicílio aqui, mas será que é assim que sucede com a parcela da população que dorme nas ruas, que vive da mendicância, com os adictos desprezados pela sociedade, com aqueles que estão abaixo da linha da pobreza, em situação de insegurança alimentar, os que são discriminados pela etnia, pelo gênero, por alguma inaptidão física ou, ainda mais perverso, por suas escolhas?
O IPS Brasil 2024 nos convida a iniciar essa necessária reflexão meditando sobre as respostas que, em nossa cidade, daríamos para as seguintes perguntas: Aqui,
■ As pessoas têm comida suficiente para comer e recebem assistência médica básica?
■ As pessoas podem beber água e manter-se limpas, sem ficarem doentes?
■ As pessoas têm moradia adequada, com serviços básicos?
■ As pessoas estão seguras?
■ As pessoas têm acesso à educação fundamental?
■ As pessoas podem acessar livremente ideias e informações de qualquer lugar do mundo?
■ As pessoas vivem uma vida saudável?
■ O meio ambiente influencia, positivamente, o bem-estar social?
■ Os direitos individuais das pessoas estão protegidos?
■ As pessoas são livres para fazerem escolhas para a sua própria vida?
■ Ninguém está excluído da oportunidade de ser um membro contribuinte da sociedade?
■ As pessoas têm acesso a níveis de educação superior?
Atenção! Todas as pessoas, bem compreendido, não apenas as pessoas brancas, do sexo masculino, heterossexuais, ricas, cristãs, proprietárias de terras e empresas, conservadoras nos costumes, defensoras da moral e da família tradicional.
E porque nasci aqui, aqui me criei, aqui vivo e espero aqui terminar os meus dias, é que, inserido no contexto da cidade, incluído entre meus pares e iguais, com enorme pejo, reconheço que nós, maringaenses, não temos respostas satisfatórias para muitas dessas perguntas, não somos esse povo maravilhoso que deveríamos ser para merecer morar em lugar tão abençoado por Deus, sem oferecer, em troca, um pouco mais de acolhimento em relação à diversidade, um pouco mais de generosa compreensão das vulnerabilidades sociais que saltam aos olhos ao nosso redor, um pouco mais de compaixão com aqueles que não usufruem das mesmas oportunidades que as parcelas mais favorecidas da sociedade têm à sua disposição.
Explico-me, e para isso não é necessário nem mesmo que eu saia do meu cotidiano de animal pedestre, que vai ao trabalho todos os dias perfazendo uma caminhada de não mais do que meia hora a pé: não importa qual seja o trajeto escolhido, invariavelmente haverá no meu caminho, independentemente da estação do ano, pessoas dormindo sob marquises de prédios, ao relento, desagasalhadas, sujas, malcheirosas, como se fossem bichos sem passado, sem presente, sem futuro.
A cidade está todos os dias do ano imunda. Haverá os que apressadamente vão colocar a culpa justamente na população de rua, nos sem teto, nos viciados em crack, nos mendigos, mas isso não é sequer uma meia verdade. Esse público-alvo preferencial de nossas insistentes críticas não come e não bebe o conteúdo das embalagens que encontramos espalhadas pelas ruas centrais da cidade, onde estão localizados os fast foods famosos e os drive thrus caros; não deixa resíduos de construção civil entulhando vias públicas; não passeia com seus pets, despreocupados de recolher os excrementos deixados pelos bichinhos nas calçadas dos pedestres. Aliás, população de rua, via de regra, não abandona animais domésticos à sua própria sorte…
Fico me perguntando o seguinte: na casa de cada um, a pessoa come um sanduíche e toma um refrigerante, jogando os restos orgânicos da sua gulodice e a lata de material reciclável ainda com o último gole no chão da sala, dia após dia, para atrair insetos e provocar odores desagradáveis? E por que razão faz isso na cidade em que mora, que é o melhor lugar do Paraná para se viver, e o 15º melhor lugar do Brasil em qualidade de vida?
Se o seu pet faz cocô no tapete da sua sala de jantar, você limpa? Não é razoável, então, que você recolha o cocô que ele faz na porta da loja do seu vizinho?
O trânsito desta cidade é inamistoso, para não dizer bélico. Eu não desejaria depender de uma motocicleta como meio de transporte em Maringá, elas são praticamente armas de guerra. As pessoas achincalham-se, agridem-se verbalmente, ameaçam umas às outras com buzinaços e gestos obscenos, em discussões ridículas por terem ficado retidas em um sinal que fecha ou por uma passagem que fica indevidamente obstruída. Espelhos retrovisores quebrados e laterais riscadas de propósito fazem parte da rotina das seguradoras. Os motoristas não param para que os pedestres atravessem as ruas nas faixas de segurança; ao contrário, estacionam sobre elas; estacionam também em mão dupla, atrapalhando o fluxo normal do trânsito, quando logo ali adiante, muitas vezes, há espaço de sobra; avançam sobre sinais fechados; trafegam em alta velocidade em bairros residenciais, onde pessoas de idade e crianças podem vir a ser atropeladas sem a menor chance de defesa.
A imundície das ruas e as estatísticas perversas do trânsito, entretanto, são, na minha opinião, apenas reflexos, efeitos colaterais, consequências de um mal maior, que pretende se passar por invisível, mas não consegue mais ocultar-se, está cada vez mais escancarado diante dos nossos olhos: o endurecimento dos nossos corações, das nossas posições políticas na sociedade; uma radicalização na nossa maneira de pensar, de enxergar o mundo e os demais seres humanos, na qual quem é diferente de nós simplesmente não tem que existir.
Vou recorrer, novamente, a um exemplo pessoal meu. No dia 15 de agosto passado, feriado santo em Maringá, dia da Padroeira, depois de muitas discussões infrutíferas, me vi na condição de ter que me retirar de um grupo de WhatsApp dos formados em determinado ano do curso tal da UEM. A postagem que deu origem à dissenção entre mim e os demais participantes do grupo, todos com formação em nível superior, egressos de uma universidade pública e gratuita, bem estabelecidos na vida profissional, cristãos e cidadãos de bem, dizia literalmente, com todos os pormenores sórdidos, que quem deveria ter sido assassinado no atentado que custou a vida do líder do Hamas, em Teerã, no dia 31/07/2024, era o Dr. Geraldo Alkmin; uma fala violenta e tóxica, que foi aplaudida e defendida ardorosamente por meia dúzia de outros integrantes do grupo, igualmente radicais, enquanto os demais se calaram.
Geraldo Alkmin é um cidadão brasileiro de 72 anos de idade, médico e professor por formação acadêmica, casado há 45 anos com a mesma mulher, pai de três filhos, católico fervoroso e praticante, e político por vocação que vem de família. Foi vereador e prefeito de sua cidade natal, Pindamonhangaba, pelo antigo MDB; depois deputado estadual e federal por São Paulo, já na época do PMDB; e um dos fundadores do PSDB, em 1988, partido ao qual pertenceu por 33 anos, até 2021, e pelo qual foi Vice-Governador de São Paulo na gestão de Mário Covas e duas vezes Governador do Estado, em quatro mandatos. Transferindo-se para o PSB, e a convite do Presidente Lula, aceitou fazer parte de um governo de coalizão com vários outros partidos, em 2022, ocupando cumulativamente os cargos de Vice-Presidente da República e Ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços do Brasil. Mesmo com todos estes predicados de homem público, deve morrer, assassinado, por pensar diferente do autor da postagem.
Poderia ser um caso isolado, mas não é. Anteriormente, eu havia me retirado dos grupos de WathsApp da família X (da minha esposa, com quem estou casado há 37 anos), residente em Maringá desde a criação do município; dos antigos alunos do colégio Y (onde cursei os ensinos básico e fundamental, durante 11 anos), fundado em Maringá na década de 1950; dos funcionários aposentados da empresa Z (em que trabalhei por 34 anos, ininterruptamente), na agência aqui sediada desde 1953; e até dos moradores do meu próprio condomínio residencial (do qual faço parte há mais de 30 anos), que a princípio foi criado exclusivamente para a comunicação de informes sobre o dia-a-dia do funcionamento do prédio, pelo mesmo motivo: radicalismo político!
Maringá se tornou um lugar irrespirável, não só porque aqui existe gente que gosta de cortar árvores (flamboyants, ipês, sibipirunas!) sob a alegação de que elas fazem muita sujeira na estação do ano em que caem suas flores, desprendem uma espécie de cola que gruda nos sapatos das pessoas, estragam as calçadas com suas raízes!
O ar aqui está irrespirável também porque no seio das famílias, no ambiente interno das empresas, nas mesas dos bares, em todos os lugares, se você não está disposto a defender as palavras de ordem – Deus, Pátria, Família e Liberdade! – (mesmo que este tenha sido o mesmo slogan do fascismo italiano, perverso e radicalíssimo movimento político que vigorou entre 1922 e 1943, em que Benito Mussolini levou à morte cerca de 440 mil pessoas), haverá sempre uma turba de desconhecidos barulhentos, mas também de parentes, vizinhos, colegas de trabalho, antigos companheiros de faculdade e amigos (?) de infância, dispostos a rotulá-lo de petista, comunista, esquerdopata ou coisa pior.
No meu caso específico, nunca fui filiado a partido político algum; não mitifico pessoas; penso que políticos investidos em cargos públicos, ou no exercício de mandatos que lhe foram conferidos pelas urnas, são agentes a serviço da sociedade, que haveriam de honrar seus deveres bem antes de usufruir os privilégios que tal empoderamento lhes confere.
Desde a minha juventude, em cada eleição, a nível municipal, estadual ou nacional, opto pelo candidato que esteja mais propenso ou seja mais apto a defender as bandeiras que me são caras:
■ A defesa intransigente do Estado Democrático de Direito;
■ O acolhimento a todas as pessoas vulneráveis, sem distinção;
■ A representação política das minorias e/ou o fortalecimento das causas das maiorias subrepresentadas;
■ A luta antirracista;
■ A defesa dos direitos da comunidade LGBTIA+;
■ O empoderamento do feminismo;
■ A liberdade de credo e de expressão, nos limites do que prevê a Constituição;
■ A defesa e o cuidado com as populações originárias e ribeirinhas;
■ A preservação do meio ambiente e a exploração sustentável dos ecossistemas.
São os meus valores. São inegociáveis. Não abro mão deles. Seguindo cegamente um líder ou uma agremiação, teria que flexibilizá-los para me adaptar aos nem sempre coerentes programas partidários, ou tolerar os deslizes de caráter de seres humanos falíveis, ao respaldar indiscriminadamente seus posicionamentos, que muitas vezes não estariam de acordo com os meus.
Ampliando a reflexão do particular para o coletivo, as conclusões são ainda mais preocupantes. Em novembro de 2022, tão logo foram divulgados os resultados finais do segundo turno das eleições presidenciais, um grupo de maringaenses, auto intitulados cidadãos de bem acima de qualquer suspeita, cristãos, conservadores, defensores dos bons costumes e da família tradicional, e patriotas acima de tudo, organizaram um acampamento às portas das instalações do Tiro de Guerra de Maringá, na avenida Mandacaru, e lá permaneceram durante semanas, em sinal de protesto. O que desejavam os manifestantes?
■ Desacreditar o legítimo resultado das eleições, porém apenas na parte que não consultava seus próprios interesses, ou seja, a vitória de nenhum deputado simpatizante das ideias do grupo foi questionada;
■ Pleitear intervenção militar, eufemismo para ruptura da ordem democrática institucional e o consequente estabelecimento de uma ditadura liderada pelo candidato derrotado nas urnas, numa afronta à soberania popular conferida pelo sufrágio universal;
■ Impedir a posse de governantes eleitos pelo voto popular, numa tentativa de golpe de estado, perpetrada em associação criminosa para esse fim;
■ Exigir o afastamento, por qualquer meio, de Ministros do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, apenas porque, no uso de suas atribuições, garantiram minimamente o funcionamento das instituições e a realização do pleito, embora não tenham conseguido evitar crimes em série de toda ordem, contrários ao ordenamento jurídico e democrático.
Os desordeiros, cometendo crimes tipificados no Código Penal de forma sequenciada, impediram, durante semanas, a utilização de uma das pistas da avenida Mandacaru, importantíssima artéria de ligação norte/sul da cidade, interditaram uma imprescindível ciclovia localizada em seu canteiro central e obstruíram ou dificultaram propositalmente o trânsito de veículos na outra pista da avenida, com panfletagem e divulgação de fake news e desinformação.
O que fizeram as autoridades constituídas do município, que são pagas com o dinheiro dos impostos de todos os cidadãos, não apenas daqueles que votaram no candidato que perdeu as eleições? Nada. Absolutamente nada. Numa conduta totalmente permissiva, negligente e prevaricadora, consentiram que o acampamento permanecesse ali, transtornando a vida de quem precisava transitar obrigatoriamente por aquele trecho da cidade, e fazendo vistas grossas para o fato de que a organização criminosa foi financiada por particulares e empresários, cúmplices e coniventes, que providenciaram suprimentos, alimentação, agasalhos e até entretenimento para aquele bando de desocupados, até 31 de dezembro daquele ano.
Hoje, quando se sabe que a fomentação exacerbada do discurso de ódio levou ao paroxismo de um golpe tentado, e fracassado apenas por incompetência de quem o planejou e não o soube executar, mas que tinha em seu bojo a extrema ousadia de cogitar a covarde eliminação física de três das figuras mais importantes da República, de emboscada, o presidente e o vice-presidente eleitos, mais o presidente do Poder Judiciário Eleitoral, e membro do STF, o que se escuta nas ruas, como ouvi ainda ontem, numa conversa na fila do caixa do mercado, é que deviam ter sido mortos mesmo, que foi uma pena não ter dado certo o golpe de estado. Pergunto, e não encontro resposta: Onde foi que nos perdemos?
Não há problema algum em uma pessoa ter um posicionamento político mais à direita, ter ideias liberais na economia e conservadoras nos costumes, ser adepta a um Estado mais enxuto, menos protecionista, mesmo havendo tantas desigualdades sociais centenárias, sem solução à vista, em nosso país, em nosso estado, em nossa cidade campeoníssima nos quesitos de qualidade de vida. Havendo decência para discutir em alto nível esses posicionamentos com quem pensa de forma não exatamente igual, sem ofensas, com respeito a pontos de vista divergentes e disposição para o consenso, é possível a construção de políticas públicas que contemplem o que há de melhor em ambas as visões de mundo, que, em significativos pontos, não são totalmente excludentes, mas até mesmo complementares.
Neste mesmo mercado de bairro que frequento, dias atrás, esperando minha vez de ser atendido, numa conversa com minha esposa, num tom de voz próprio dos que gostam de preservar sua privacidade, comentava com ela os alarmantes indicadores sociais da nossa vizinha Argentina: mais de 200% de inflação nos últimos 12 meses, 52,7% da população em situação de miséria, 40% da população economicamente ativa em situação precarizada de informalidade, recorde histórico de desemprego… quando, de repente, um jovem que estava próximo de nós, que pela idade poderia ser nosso filho, quiçá nosso neto, interrompe bruscamente nossa conversa com dois dedos em riste na minha cara, o polegar e o indicador, e grita agressivamente para mim: “Faz o L agora!”
Não sei precisar se o meu choque foi maior por ele pensar que eu estava me referindo ao Brasil, ou por ele desconhecer completamente as diferenças entre as realidades vividas por Brasil e Argentina nesse quadrante da história, ou ainda pelo fato de tratar-se de uma pessoa cujo perfil remetia ao estereótipo de um cidadão de menos de 25 anos, pobre, formalmente pouco instruído, empregado em trabalho subalterno e braçal, e pardo, ou seja, preenchia todos os requisitos para ser um número a mais nas estatísticas daqueles que devem ser preferencialmente eliminados, segundo a visão de mundo dos autores do discurso que ele reproduziu apontando os dedos no meu rosto.
Os leitores deste artigo podem contra argumentar comigo, alegando que tudo o que foi aqui abordado acontece em todas as partes do Brasil e do mundo, mas eu não moro em todas as partes do Brasil e do mundo, eu moro em Maringá, e aqui, em nossa cidade, esse Paraíso em que há mais produtores rurais que são agraciados com isenção de IPI para adquirir camionetes no valor de mais de R$ 300 mil do que beneficiários do Bolsa Família que não conseguem se tornar autônomos depois de algum tempo no programa, sou obrigado a ouvir, nos meios em que circulo, afirmações arrogantes do tipo “Quem é que paga a conta dos programas de esmola desse governo comunista?”, ou “Se você comeu hoje, agradeça a um produtor rural!”, quando só na cadeia produtiva do soja, no Brasil, há renúncia fiscal de R$ 57 bilhões por ano. A propósito, se eu comi hoje, ontem, e vou comer amanhã, é resultado do meu trabalho de uma vida inteira. Sou grato às oportunidades que se abriram para mim, mas tive que honrá-las.
Gostaria de me sentir em casa novamente em Maringá, reconstruir minhas pontes de afeto, me sentir seguro de novo em relação à amizade de velhos conhecidos, que hoje parecem pertencer a uma verdadeira seita, na qual sou indesejado, malquisto e malvisto pelas minhas escolhas pessoais. Sinto que aqui as pessoas adoecem mais nos tempos de agora, física e mentalmente, e deixam escapulir, ou mesmo perdem por completo, afeições que lhes foram caras no passado, de forma irreconciliável. Isso é muito triste.
Maringá já foi um lugar muito melhor para se viver do que é hoje.
(*) Vicente Ruivo Rodrigues dos Anjos é um nome fictício, empregado deliberadamente nesse artigo para dificultar a identificação de instituições, autoridades, pessoas, localizações e outras informações da vida real, em particular, dado que o objetivo da reflexão aqui proposta é, de forma generalizada, contribuir para uma postura mais humana e acolhedora de todos nós, cidadãos maringaenses.
Foto: Roberto Dziura/AEN