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A moça da janela

Vivemos em uma época estranha, em que as pessoas perderam completamente a noção de sensatez e razoabilidade

Chamou a atenção e se propagou rapidamente pela mídia o fato ocorrido em um voo comercial. Uma criança chorava porque queria ocupar o assento ao lado da janela. Diante da recusa da ocupante em ceder seu lugar, alguém resolveu gravar a cena e divulgar o acontecimento nas redes sociais. E a celeuma tomou conta do País, com manifestações de toda espécie. O imprevisto poderia ser considerado corriqueiro em ambientes controlados como aquele, não fosse acompanhado pelo áudio notadamente crítico em relação à postura da até então ilustre desconhecida, que optou por manter a calma e ignorar sabiamente as manifestações exacerbadas de determinados passageiros.

Um arcaico e sensato provérbio japonês, já corroído pelo tempo, solenemente ignorado pelas conectadas pessoas da atualidade recomenda que se “endireite o galho enquanto a árvore é nova”. Isso remete perfeitamente aos limites naturalmente impostos em nossas vidas. No trânsito, haveremos de respeitar o semáforo, as vias preferenciais, os locais de estacionamentos regulamentados e outras tantas situações inerentes aos deslocamentos por vias públicas. No cotidiano das relações sociais, idem. Somos instados a respeitar os horários de atendimento em consultórios, instituições públicas e privadas, agências bancárias, comércio em geral, enfim, os limites delimitam absolutamente tudo. E a época ideal de aprendizado para o acatamento e a interiorização dessas restrições necessárias começa na primeira infância. Os pais ou responsáveis devem mostrar aos pequenos a necessidade em se respeitar as contingências naturais nos relacionamentos, uma forma de gerenciar futuros dissabores e ainda, forjar positivamente o caráter de um indivíduo.

No caso especifico da preferência pela janela da aeronave, há que se destacar uma característica peculiar: a ousadia presente naqueles que se colocam no direito de prejulgar o semelhante. O áudio “… isso é repugnante, no século 21, a pessoa não tem empatia com uma criança” não deixa dúvidas de que existiu a intenção em expor e constranger a “moça da janela”. A alegação da voz feminina tem, talvez inconscientemente, o nítido propósito de manipular os demais passageiros, em detrimento ao direito assegurado à cliente da companhia aérea e se sustenta precariamente na falsa sensação de impunidade proporcionada pelas redes sociais. Esse tipo de comportamento ocorre geralmente por ignorância ou indiferença pelos dispositivos da legislação penal, que tipifica os crimes contra a honra. Ainda que da forma mais branda, a incivilidade no trato com o próximo pode ser classificada como um ilícito perfeitamente punível, quando devidamente constatada. É importante ressaltar que a liberdade individual termina onde começa a do semelhante. E que comportamentos dessa natureza não devem ser ignorados ou relevados, até mesmo para desestimular futuras demonstrações de radicalismos desse naipe.

Vivemos em uma época estranha, em que as pessoas perderam completamente a noção de sensatez e razoabilidade. A educação, o respeito e o apreço aos valores éticos e morais estão sendo gradativamente abandonados, por todas as faixas etárias. O uso inconsequente do aparelho celular, turbinado pelas redes sociais, criaram personagens virtuais, cada vez mais distantes da realidade. A exposição pública da vida privada tem o poder de atrair e monetizar as mais insólitas finalidades, nem sempre revestidas por boas intenções. E pelo andar da carruagem, muito mais há de vir por aí. Quem viver verá.       


(*) José Luiz Boromelo, escritor e cronista em Marialva/PR

Ilustração: Reprodução rede social

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