A tirania da sociedade


A imensa maioria que usa meios tecnológicos preza por uma conduta ilibada, norteada por sentimentos inalienáveis como dignidade e caráter reto
A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), deu uma inusitada declaração durante o julgamento da constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, que analisa a responsabilização das plataformas digitais, mesmo sem ordem judicial, por conteúdos que eventualmente possam conter discursos de ódio ou atos violentos publicados por usuários. Conforme a eminente magistrada, “não se pode permitir que estejamos numa ágora em que haja 213 milhões de pequenos tiranos soberanos. O soberano aqui é o direito brasileiro. É preciso cumprir as regras para que a gente consiga uma convivência que, se não for em paz, tenho pelo menos um pingo de sossego. É isso que buscamos aqui, esse equilíbrio dificílimo”.
Seria edificante que a douta julgadora viesse a sopesar com maior precisão suas assertivas, uma vez que sabidamente um percentual significativo dos “pequenos tiranos soberanos” dessa nação ordeira e trabalhadora não costuma utilizar-se de plataformas digitais para emitir opiniões, mas promover o desenvolvimento do País. E mesmo que o fizessem, a legislação específica já contempla mecanismos eficientes o suficiente para penalizar aqueles que porventura, vierem a infringir quaisquer dos artigos ali contidos. Abranger indistintamente toda a população e infligir a ela supostas condutas delituosas baseadas em opiniões estritamente pessoais não parece ser uma postura razoável. Resta, portanto, conjecturar que a manifestação da insigne ministra deva ser interpretada como uma metáfora extemporânea, com o intuito de ilustrar uma situação específica, ainda que posicionamentos dessa natureza venham a contrastar frontalmente com as atribuições precípuas dos integrantes daquele poder da República, reconhecido como guardião do estado democrático de direito.
Vale ressaltar ainda, que apesar dos conceitos emitidos pela ilustre magistrada, o cidadão brasileiro tem sim, todo o direito de utilizar as plataformas digitais da maneira como julgar necessário, de acordo com seus interesses e prioridades, obviamente respeitando-se as regras estabelecidas pelos dispositivos coercitivos constitucionais. É dessa forma que o agronegócio impulsiona suas atividades e coloca o alimento na mesa de cada cidadão brasileiro. É através dessa tecnologia que o empreendedor disponibiliza centenas de milhares de vagas de trabalho. É com esse instrumento digital que milhões de pessoas buscam diariamente seu sustento. É o uso de plataformas digitais que torna possível e rentável o comércio de produtos e a prestação de serviços, nos mais variados segmentos. Essa é, indiscutivelmente, a ferramenta primordial da atualidade, que empresas de todo porte e diferentes instituições utilizam para viabilizar seu funcionamento. Smartphones, tablets, notebooks e quaisquer equipamentos que possibilitem a comunicação através da transmissão de imagem, voz e dados são itens imprescindíveis na vida de qualquer cidadão.
A qualificação depreciativa dirigida a uma pessoa de bem, imposta dubiamente por quem deveria resguardar os direitos e garantias individuais se mostra uma ofensa gratuita e desnecessária. Ainda que uma ínfima parcela da população se utilize de meios tecnológicos para o cometimento de hipotéticos delitos, a imensa maioria preza por uma conduta ilibada, norteada por sentimentos inalienáveis como dignidade e caráter reto. E sobre respeito ao próximo, vale relembrar aquela antigo, mas sempre atual adágio popular: “Não se dá o que não se tem”.
(*) José Luiz Boromelo, escritor e cronista em Marialva/PR
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