A solidão no poder: Lula contra todos os partidos

A corrosão da democracia brasileira não se dá apenas pelo autoritarismo explícito, mas pela captura do processo democrático por interesses privados

De Paulo Baía, no site Agenda do Poder:

O Brasil político de agora é uma máquina de fingimentos. Lula, no centro da engrenagem, governa com ministros que representam partidos que, na prática, não o apoiam. Ocupam espaços no Executivo, circulam com a liturgia do poder, mas no Congresso Nacional agem como sabotadores discretos. A base que o sustenta é a mesma que o solapa. A coalizão formal não passa de um corpo sem nervos, sem alma, sem fidelidade. É uma dança sem música entre o presidente e forças que não querem dançar, só arrancar concessões.

Essa encenação diz muito mais do que parece. Trata-se de uma forma de dominação que opera por dentro da institucionalidade, esvaziando-a de sentido. O presidencialismo de coalizão, antes pragmático, tornou-se um jogo de sequestro e resgate. O governante se vê obrigado a pagar resgates diários para manter o governo refém de pé. Ministérios são entregues como moeda de troca, mas não há entrega política em contrapartida. Há apenas o parasitismo elegante de quem finge governabilidade para manter as aparências enquanto o poder real escorre por entre os dedos.

Lula, nesse cenário, emerge como uma figura trágica: o político mais experimentado do país, com um vínculo afetivo profundo com os setores mais pobres da população, mas isolado no comando de um governo que é dele e não é. Um presidente que fala para o povo, mas é silenciado por um Parlamento que fala apenas para si. Ele carrega um mandato que lhe foi dado pelo voto, mas está cercado por forças que desconfiam do voto como expressão legítima da soberania popular. O Congresso atual é um espelho invertido da vontade coletiva: projeta um país que não existe e combate o país que existe.

Essa forma de operar o poder é mais do que cálculo. É uma cultura, uma prática social arraigada, uma antropologia do cinismo. Os partidos se tornaram agremiações negociantes, onde o conteúdo ideológico foi dissolvido na ambição por espaços. Não há aliança possível com projetos que desejam o colapso silencioso do próprio governo que integram. A política virou um mercado onde se vende estabilidade a preços exorbitantes e se entrega sabotagem com recibo institucional. A traição é sistemática, mas cuidadosamente protocolada.

O que torna essa situação ainda mais brutal é o fato de que não há exceções. Nenhum partido com representação no Congresso Nacional atua hoje com coerência em defesa do governo que ajudou a compor. Os que indicaram ministros estão mais interessados em benefícios orçamentários do que em apoiar efetivamente um programa de governo. Os que se dizem de centro apenas calculam seus ganhos em silêncio. E os que integram o Executivo se tornaram operadores do seu próprio projeto, divorciado da Presidência. Nenhum partido, de fato, se compromete com a travessia política de Lula. Todos, de maneira direta ou omissa, colaboram para a erosão de sua autoridade.

A resposta possível a esse estado de coisas seria a ruptura com o pacto podre. Não no sentido antidemocrático da ruptura institucional, mas na dimensão simbólica de abandonar a hipocrisia. Convocar o povo, não para protestos desesperados, mas para a construção de uma nova linguagem política. Uma linguagem que não aceite mais a conciliação como destino, mas que reivindique o conflito como terreno legítimo da transformação. Isso exigiria um gesto raro: renunciar à zona de conforto do governismo e encarar de frente a realidade brutal do país que se nega a mudar.

Há um poder novo que só emerge quando tudo parece perdido: o poder de quem não deve nada ao cinismo. Um presidente cercado por inimigos elegantes, que vestem a institucionalidade como disfarce, pode descobrir nesse cerco uma liberdade radical. A liberdade de nomear as coisas como são. A coragem de dizer ao povo que o governo está cercado por aqueles que se beneficiam do fracasso do país. Não se trata de heroísmo, mas de lucidez. A lucidez de quem compreende que a governabilidade que hoje se oferece ao Brasil é um pacto de mediocridade.

A corrosão da democracia brasileira não se dá apenas pelo autoritarismo explícito, mas pela captura do processo democrático por interesses privados. O Congresso se converteu numa federação de negócios, impermeável à dor social, alheio ao povo e devotado apenas à manutenção de seus próprios privilégios. Suas decisões raramente ecoam as urgências do país. É um poder que fala uma língua que ninguém mais entende, porque já não fala com ninguém.

Romper esse ciclo exige mais que força. Exige beleza, forma, narrativa. É preciso reencantar a política com um discurso que não tema a frontalidade. O Brasil precisa ouvir, com clareza, que está sendo governado contra si. E que há, sim, uma saída: não pelos atalhos do autoritarismo, mas pela reinvenção do poder como espaço de verdade. A verdade, nesse caso, é cruel, mas libertadora: o presidente está só. E justamente por isso pode ser mais livre do que nunca. Porque nada mais o prende aos ritos de uma aliança que nunca existiu.

O país está diante de um espelho. De um lado, a imagem oficial da institucionalidade, feita de siglas ocas e discursos calculados. Do outro, o reflexo cruel de um governo que tenta sobreviver num ambiente que o quer sangrar até o fim. Lula ainda é o único elo entre o povo real e a política possível. Mas esse elo está sendo testado, esticado até o limite. A história não perdoa aqueles que fingem que tudo está bem quando o mundo desmorona. Talvez tenha chegado a hora de não fingir mais. A solidão do poder pode ser, também, o início de sua purificação. E essa solidão, hoje, é absoluta: Lula está só diante de todos os partidos. E diante da história.


(*) Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor da UFRJ

Foto: Ricardo Stuckert/PR