Ícone do site Angelo Rigon

“O homem que viu a morte, mas não morreu”

Aos 93 anos, acamado, mas lúcido, Porto Alegre, apelido de Jácomo Trento, um dos líderes da Revolta dos Colonos, no sudoeste do Paraná, conta detalhes do conflito em entrevista por telefone, acrescida de dados de livro que retrata o assunto

“Depois que as companhias afirmaram que eu tinha 25 anos e não chegaria a 26, comecei a andar com um revólver em cada lado da cintura e em cada bota”. A frase é do gaúcho Porto Alegre, no livro “1957 – Revolta dos Colonos, lembranças de um idealista”, de Luiz Marini. “Sempre tinha um rifle winchester encostado entre os dois bancos do jipe”, completa ele na mesma publicação. As palavras refletem a tensão em que se vivia naquela época no sudoeste do Paraná. Talvez o último personagem vivo que tenha se envolvido no conflito seja Jácomo Trento, apelidado de Porto Alegre, que chegou a Pato Branco, em 1953.

 Numa tarde de terça-feira, chuvosa, telefonei para ele, que está com 93 anos e vive em um apartamento, no centro de Pato Branco. Após alguns segundos, uma voz feminina atendeu. Era Reni, a mulher de Porto Alegre. Após me identificar, ela passou o telefone ao marido. Acamado, ele fala com dificuldade, mas estava lúcido e se recordava dos principais momentos da revolta da qual participou. Confirmou que viajava com várias armas, mas nunca matara ninguém. “Eu rezava muito, pedindo proteção, pois vivia numa corda bamba e a qualquer momento poderia tombar morto”, afirma.

Um dos momentos em que Jácomo Trento, o Porto Alegre, não está na cama no apartamento em que mora com a mulher, Reni, no centro de Pato Branco (Fotos: Acervo da família)

Coragem não lhe faltava. Desde menino, em Sarandi (RS), onde nascera. Naquela região do Alto Uruguai corria atrás do carroção puxado por uma junta de bois e guiado pelo pai. Matriculado numa escolinha rural, as letras não o atraíram. Rebelou-se contra a professora, que tentava lhe ensinar ao menos a desenhar as letras do alfabeto. Mas ele, um dia, na tentativa de fugir da escola, lhe deu uma mordida na perna. Não foi tão grave, mas o suficiente para ela expulsá-lo das aulas. Motivo para Porto Alegre desistir dos estudos e continuar ajudando o pai nos afazeres da roça.

Aos 12 anos arrumou um trabalho de ajudante numa oficina mecânica. Ao completar 18 anos serviu ao Exército em Rosário do Sul, a 415 quilômetros de Sarandi. Disciplinado, se esforçava nas lições bélicas. Destacou-se na artilharia. Com um antigo mosquetão acertava um alvo a 400 metros. Com o revólver também era rápido e certeiro. Bastava um tiro para despedaçar uma caixa de fósforos a 20 metros. De Rosário, ele foi para Porto Alegre concluir o serviço militar. Ao dar baixa, um amigo o convidou para trabalhar numa oficina da Ford em Pato Branco, no sudoeste do Paraná.

O novo patrão dele também se chamava Jácomo. Para evitar problema com os nomes iguais o apelidaram de Porto Alegre. O ano era 1953. Logo ele saiu daquele trabalho e ingressou numa empresa em que guiava caminhões, trator e colheitadeira. Em 1956, o pouco dinheiro que guardara foi suficiente para comprar uma serraria em sociedade com um amigo. Mas o negócio fracassou. Não o suficiente para impedi-lo de se casar e investir em novo ramo, tornando-se sócio da Casa Rádio, em Pato Branco, especializada em vendas de rádios, vitrolas, televisores e peças para esses equipamentos.

Num jipe, Poto Alegre percorria os municípios de Itapejara d’Oeste, Verê, Dois Vizinhos e Francisco Beltrão. As viagens o fizeram se inteirar do conflito que resultaria na Revolta dos Colonos, em 1957. Mas ele não apenas observou. Resolveu ajudar os colonos que disputavam as terras. O imbróglio envolvia o governo do Paraná, gestão de Moysés Lupion, que negociara terras devolutas com a Clevelândia Industrial e Territorial Ltda (CITLA), cuja sede era em Francisco Beltrão. Na sequência, as terras foram negociadas com duas companhias, a Apucarana, que se instalou em Santo Antônio do Sudoeste e Capanema, e a Comercial, que funcionava também em Francisco Beltrão.

A Comercial e a Apucarana chegaram para tomar conta das glebas Missões e Chopim, cujas titularidades estavam em litígio. Em ambas, moravam em torno de três mil colonos. Em “1957 – Revolta dos Colonos”, Marini descreve que no início, elas convidaram os colonos para irem até seus escritórios acertarem a situação. Desconfiados, poucos foram, mas o problema não se resolveu, repetindo o que ocorrera, na década de 1940, em Porecatu, no norte do Paraná, divisa com São Paulo. “Os jagunços agrediam os colonos, estupravam as mulheres na frente dos maridos, surravam e matavam as pessoas”, atesta o livro.

Colonos comemoram a vitória exibindo as armas no centro de Pato Branco ao derrotarem as companhias e seus jagunços (Foto: Arquivo Nacional)

O conflito sensibilizou Porto Alegre, que passou a se reunir com os colonos, alertando-os que não assinassem nenhum papel. Em Pato Branco, ele tinha o amigo Ivo Thomazoni, que comandava um programa na Rádio Colmeia. Um noticioso chamado “O Repórter ZYS 35”, ao meio-dia. Na emissora, que funcionava no mesmo sobrado de madeira da Casa Rádio, Thomazoni denunciava o conflito. Segundo o livro de Marini, os colonos contaram a Porto Alegre que os recibos emitidos pelas companhias constando os pagamentos das terras eram em papéis de carteira de cigarro e de embrulho. Jagunços os assinavam, cujos apelidos eram: Maringá, Lapa, Chapéu-de-couro, Quarenta e quatro, Pé-de-chumbo, Gauchinho, Paraíba, entre outros.

As notícias circulavam. Denunciava a Rádio Colmeia: colono perseguido se embrenha no mato. Corpo de fulano é encontrado com as mãos amarradas e pedras atadas aos pés, na correnteza próximo à balsa do Rio Iguaçu. Jagunços surraram um colono e seus filhos em Verê. Em um distrito de Dois Vizinhos, queimaram a casa de um agricultor e estupraram a sobrinha dele, de 15 anos. Após se desviar de tiros, um colono ficara uma noite mergulhado no Rio Santana, com água até o pescoço, escondido embaixo de arbustos. À noite, beltrano subiu em um pé de laranja frondoso enquanto jagunços invadiam a casa dele. “Muitos fugiram para a Argentina e outras regiões do Paraná”, conta Porto Alegre.

Foto  que mostra Porto Alegre (à esq.) rendendo um jagunço está na capa do livro de Luiz Marini e, no fim da revolta, foi destaque na famosa revista estadunidense Life

No livro, Marini diz que o gaúcho tinha uma senha para chegar à casa dos colonos. Acionava três vezes a buzina, pois os jagunços também chegavam de jipe. Nas andanças, Porto Alegre recebia constantes ameaças de morte, mas diz que não tinha medo. “Eu tinha fé e confiava na máxima: ‘se tem bala que vem, tem bala que vai’”, diz, ao telefone, com uma pausa e uma respiração profunda. “Estou cansado, pra dormir, à noite passada, tive de tomar seis gotas de Rivotril, mas sou persistente e não me entrego aos perrengues da idade”.

De fato, persistência nunca lhe faltou. Marini diz no livro que aos 25 anos, o destemido gaúcho de 1,73 metros de altura, branco, magro, forte e cabelos castanhos, resistia ao embate com as colonizadoras. Contudo, um fato iria abalá-lo, mas também lhe dar ânimo para seguir na luta: o assassinato do amigo vereador Pedrinho Barbeiro. Diz que ao chegar a Verê, havia uma multidão na frente da casa dele. As pessoas reunidas em volta do corpo choravam pela perda do líder. Mataram-no à frente da mulher e dos filhos com dois tiros na cabeça. Era 21 de maio de 1957, dia em que começou a Revolta dos Colonos.

Daí em diante, tensão e mortes se espalharam pelo sudoeste do Paraná. O fim do embate terminou com a prisão do jagunço Maringá, em 21 de outubro de 1957. Considerado “elemento perigoso”, com  a debandada dos jagunços, ele permanecera na região e punha em risco a vida de colonos. Numa sexta-feira, 18 de outubro, um homem com chapéu de couro de abas largas adentrou à Casa Rádio e disse a um balconista que precisava falar com Porto Alegre. O rapaz o chamou; o visitante indagou: “Me disseram que o senhor é caçador de jagunços. Sou lá dos grotões do Rio Iguaçu e por ter que vir a Pato Branco, me pediram que eu avisasse o senhor que tem jagunço escondido lá nos Micos”.

Após alguns minutos de prosa, Porto Alegre agradeceu o informante e disse que iria se preparar para prendê-lo. O local denominado Micos era longe. De jipe, ele partiu e, ao chegar lá deparou com cerca de 100 homens armados que faziam buscas, mas sem adentrar à mata. Com alguns deles, ele embrenhou na mata, mas não o encontraram. Após algumas horas, uma pessoa se aproximou do grupo e disse que Maringá se escondia num rancho de sapé a poucos quilômetros dali. Com alguns homens, Porto Alegre se dirigiu ao local. Ao chegar notou que a porta estava trancada por dentro. Forçou-a, e a taramela cedeu.

Viu um homem vestido de jagunço sentado a uma mesinha, na cozinha. Envolta dele havia algumas pessoas, que saíram. O gaúcho o reconheceu e lhe disse que os colonos o procuravam. Maringá respondeu que o esperava para se entregar. Disse que não se entregara antes porque seria linchado. “Sei que se me entregar a você serei protegido da sanha dos colonos”, relata Marini no livro. Sabia que teria mais valor vivo do que morto porque tinha muita informação das companhias que atuavam na região. Numa parte do caminho, uma multidão cercou o jipe na tentativa de linchá-lo. Porto Alegre os convenceu de que o jagunço precisava ficar vivo para contar sobre os crimes das companhias.

O jipe ia devagar pela trilha esburacada no meio da mata fechada. Maringá aproveitou para contar os crimes da jagunçada. Inclusive, a chacina da família de João Saldanha, que anos depois se tornaria figura conhecida no futebol e no rádio esportivo brasileiro. Os crimes ocorreram no município de Ampére. Desviando de balas, Saldanha conseguira fugir com um dos filhos pelos fundos da casa. Segundo Maringá, Chapéu-de-couro matara a mulher dele, lhe cortando um dos seios; o jagunço José Lucas matou a criança de cinco anos jogando-a para cima e espetando-a com uma adaga. No depoimento ao juiz, Maringá só confirmou os crimes na presença de Porto Alegre, que o salvara do linchamento.

Entre outros, confessou que o ex-delegado de polícia de Francisco Beltrão, José Penso, o havia nomeado inspetor policial de quarteirão. Declarou que Penso ganhava 5 mil cruzeiros de cada companhia para protegê-las e não reprimir a ação dos jagunços na região. Revelou que Pedro Faceiro, subdelegado de Dois Vizinhos, era um dos corretores da Comercial e espancava colonos que se rebelassem contra as companhias. Relatou que Pé-de-Chumbo forçava colonos a assinarem contratos com a Comercial. Ele também teria matado o vereador Pedrinho Barbeiro.

A revolta terminou com a prisão dos jagunços, expulsão das companhias Apucarana e Comercial e ocupação da delegacia de Pato Branco. O grupo de Porto Alegre realizou 37 prisões; Maringá foi o penúltimo preso. Milhares de colonos armados de revólver, espingarda, carabina, faca, facão e foice ocuparam a cidade. Porto Alegre e o amigo Ivo Thomazoni comemoraram a vitória dos colonos. Com eles, estavam Vergílio Pedro Carbonera, Elias Moraes, o Nego Elias, Dorvalino Cantú, Hilário Ribeiro, entre outros que participaram da luta e do desfecho da revolta.

Jácomo Trento, o Porto Alegre, e o escritor Luiz Marini, no lançamento do livro que trata do tema, em 2017, em Pato Branco (Foto: Facebook)

O presidente da República, João Goulart, esteve em Pato Branco, em 17 de março de 1962. Ao lado do governador do Paraná, Ney Braga, deu início ao processo de legalização das terras do sudoeste do estado. Até hoje, Porto Alegre comemora. Apesar de dizer que gostava de viver perigosamente, ele afirma que nunca precisou matar um inimigo. Às vezes, a intuição o salvava, como fez ao chegar a uma encruzilhada. Refletiu e escolheu uma estrada e, por sorte, na outra os jagunços o esperavam. “Só tenho a agradecer a Deus e aos companheiros, que foram leais até o fim, sem a entrega e a luta de cada um não teríamos vencido a força das companhias e os seus terríveis jagunços”, diz ele ao telefone.

Goulart assinou o decreto presidencial emitindo a posse das terras nas glebas Missões e Chopim. Sem conflitos foram expedidos 12.385 títulos de propriedades urbanas e suburbanas e 30.920 títulos de propriedades rurais. Porto Alegre que anos mais tarde vendeu a parte da sociedade na Casa Rádio, se mudou para Cascavel e fundou o jornal “Fronteira do Iguaçu”. De lá, partiu para o Acre, onde comprou três seringais nativos. Naquele estado, ele denunciou um esquema de corrupção envolvendo políticos e empreiteiras, que contrataram jagunços para assassiná-lo.

Um dos jagunços tentou matá-lo no portão da fazenda em que morava. Porto Alegre chegava à noite, em casa, de carro, com a mulher, Reni. Ao descer para abrir o portão, um pistoleiro escondido deu-lhe um tirou no olho. Por sorte, ele conseguiu entrar no carro e, com ajuda da mulher, fugir para a cidade. Amigos o levaram ao hospital. Após oito horas de cirurgia, perdeu a vista, mas continua vivo para contar as histórias. “Sou um homem que viu a morte, mas não morri”, brinca ele, encerrando a entrevista por telefone.

L

Entrevista e texto: Donizete Oliveira

Sair da versão mobile