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Um pé vermelho que fez história na narração esportiva

A paralisia infantil lhe tirou o movimento das pernas e o obrigou a andar de muletas e cadeira de rodas, mas não o impediu de se tornar um narrador de futebol referência no Paraná e no Brasil, transmitindo diversos eventos esportivos, incluindo sete Copas do Mundo, pela Rádio Paiquerê, de Londrina 

O porteiro nos autoriza a subir. Entramos no elevador. O anfitrião nos aguardava, no 11º andar, com a porta aberta. Um apartamento espaçoso no centro de Londrina. Ele nos convida a entrar e nos conduz a uma sala. A entrevista é gravada. Em pouco mais de 50 minutos de prosa, o interlocutor nos fala da sua carreira. Leozinho e Merlin passeiam entre mesas e poltronas. Imagens ilustram as paredes. Ao lado da porta no alto, um painel de credenciais dos eventos esportivos dos quais participou.

O personagem é um dos principais narradores de futebol do Paraná e se destaca no Brasil pela trajetória, estilo e permanência no rádio. A terra roxa, na Água das Três Ilhas, zona rural de Arapongas, tingia a roupa de marrom. Com chuva, o barro; em dias de sol, a poeira. No terreiro, a galinhada, no pasto, o gado, o cavalo e um burro ou cavalo para puxar a carroça. Na roça, pelo meio dos pés de café cresciam o arroz, o feijão e o milho. Melancia e abóbora nasciam a esmo. Naquele chão roceiro, ele veio ao mundo. Os meninos jogavam bola no campinho improvisado no pasto.

Entre os muitos encontros que teve com personalidades do esporte, esta foto com Pelé, em 1989, em Copenhagen, na Dinamarca

Nascido em 1947, José Mateus de Lima, certamente mais tarde se misturaria aos coleguinhas numa partida de futebol. Mas as brincadeiras de criança não lhes foi possível. O Brasil começaria a vacinar contra a poliomielite, a paralisia infantil, na década de 1950. Aos cinco meses de idade, a doença o acometeu, deixando-o paralítico. Fora dos grandes centros, não havia tratamento para a doença. Em 1954, o pai dele, Sebastião, o levou a São Paulo. Por oito meses, ficou internado na Santa Casa de Misericórdia, no Pavilhão Fernandinho Simonsen, especializado no tratamento da poliomielite, então conhecido por “berço da ortopedia no Brasil”.

Com 10 anos de idade, o pai o levou para mais uma internação e concluiu o tratamento. A chegada à Santa Casa era motivo de brincadeiras entre os internos. Os meninos perguntavam onde morava o novo colega, qual o nome, com o que gostava de brincar e, claro, para que time torcia. Um dos passatempos deles era ouvir jogos de futebol pelo rádio. O Corinthians estava em alta. Fora campeão paulista do IV Centenário, em 1954. Título bastante comemorado, lembrava os 400 anos de São Paulo e ficou eternizado no distintivo do clube.

Mateus, portanto, não teve dúvidas, se tornou torcedor do Corinthians. A volta para Arapongas não foi fácil por causa das limitações impostas pela doença. Até hoje usa moletas. Em casa, para matar o tempo, jogava futebol de botões que aprendera no hospital. Conseguir parceiros era difícil. Jogava sozinho. Distribuía os times sobre um baú de madeira e dava voz aos confrontos. O estilo de cada narrador de futebol daquela época o empolgava. Com o tempo, passou a imitá-los. Pedro Luiz, Edson Leite, Fiori Gigliotti, Valdir Amaral, entre outros. Ouvinte da Rádio Tupi, de São Paulo, mais tarde se tornou fã de Haroldo Fernandes, cujo estilo o influenciou.

As aulas de Língua Portuguesa do professor João de Godói, no Colégio Emílio de Meneses, o ajudaram a aperfeiçoar a linguagem da narração. Mas, na época, havia apenas o sonho em se tornar um narrador. Concluiu o curso de datilografia, quase obrigatório para os estudantes do ginasial. Em 1963, surgiu o primeiro emprego. Na Delegacia de Polícia de Arapongas, que ficava na rua da casa em que morava. A rotina de encrencas que tinha de descrever todos os dias nos depoimentos o entediava. O ofício durou pouco. Por um tempo, ficou sem saber o que fazer da vida.

Um amigo o convidou a escrever uma coluna no Jornal dos Municípios, que se chamava “Curiosidades Esportivas”. Mateus gostava de imitar narradores de futebol famosos. O mesmo amigo um dia telefonou para a Rádio Arapongas e pediu que os imitasse. Ele pegou o telefone e anunciava: “aqui é o Fiori Gigliotti, agora, é o Pedro Luiz”… As imitações chamaram a atenção de um locutor, que o convidou a participar de um programa esportivo da emissora. Convite que lhe rendeu o primeiro emprego no rádio. Se tornou plantonista esportivo da Rádio Arapongas.

Sugeriram a ele reduzir o nome para J. Mateus, que usa até hoje. Cheio de entusiasmo, subia todos os dias apoiado nas muletas os 52 degraus que levavam ao escritório e ao estúdio da emissora. Tomava um breve fôlego e iniciava o trabalho. Também fazia locução comercial. “Não perdia oportunidade de aprender, ficava de olho em tudo, buscando entender cada detalhe daquele mundo do rádio”, diz.

No antigo ginasial, aprendera noções de inglês que lhe permitia fazer melhores traduções dos nomes das músicas internacionais. Muitas faziam sucesso, mas a maioria dos locutores não as pronunciava corretamente. “Os ouvintes não reclamavam, mas eu, que sempre gostei de músicas, procurava ajustar a pronúncia, facilitando a vida dos locutores”, conta.

Em meados da década de 1960, ele se transferiu para a Rádio Cultura, que disputava audiência com a Rádio Arapongas. Não faltam histórias engraçadas que ocorriam nas transmissões de jogos. Decidida por sorteio. A emissora que perdia não transmitia as partidas. Não era possível instalar mais de uma linha telefônica. Uma vez, o Arapongas FC jogou em Mandaguari. A Rádio Arapongas ganhou o sorteio e o direito de transmissão. Mas a Cultura anunciou que transmitiria a partida.

Os ouvintes ficaram na expectativa. A emissora anunciou que a transmissão seria pelo sistema RXVA. A polêmica ganhou as ruas da cidade. Um dos diretores da Cultura foi a Mandaguari e comprou o horário da Rádio Guairacá, que também transmitiria a partida. Após a transmissão, o novo sistema foi revelado: “Rádio da Avó do Alexandre (RXVA)”, que era um dos funcionários da emissora araponguense. A avó dele tinha um antigo rádio valvulado que sintoniza a emissora mandaguariense. Assim foi possível conectá-la à Cultura. O “X” era apenas para aumentar o mistério em torno da sigla.

Houve também o caso do zagueiro Brandão do Arapongas. Num jogo em Bandeirantes, o narrador recebeu a ficha de escalação pronta, distribuída pelo técnico. Não se tinha o hábito de acompanhar treinamentos e eventuais mudanças no time. O jogo começa, e o União, equipe local, faz dois gols. Em ambos, a zaga falhara. As críticas recaíram sobre Brandão, que seria o marcador de praxe. Mateus, que comandava o plantão nos estúdios, recebeu um telefonema. Era o Brandão bronqueado. “Como vocês dizem que estou afundando o time se não fui ao jogo, estou aqui, doente e acamado”, afirmou. Ele havia sido cortado por problemas de saúde, mas o nome permanecera na lista de escalação.

Casos assim eram comuns por causa da precariedade das transmissões. Quase tudo improvisado. A primeira partida que Mateus narrou foi entre Arapongas e a equipe do Primavera, em Curitiba. Uma decepção, como ele mesmo conta. A equipe da casa venceu de virada por 3×2. Mas ele se empolgou ao narrar, tentando conquistar os ouvintes. Fim do jogo; a surpresa. A antiga Telepar o informou que a linha telefônica rompera no início da transmissão e não foi possível avisá-lo. Para preencher o horário do jogo, a rádio tocou músicas. “Me esforcei tanto em vão, fiquei abalado por alguns dias”, se recorda.

Copa dos Estado Unidos, em 1994. Em pé, da esq. p/ dir.: Gil Rocha, Jairo Silva, Tatinha, Alcir Ramos, José Manoel e Toni Carraro. Sentados: J. Mateus, JB Faria e Antônio Miguel

A primeira transmissão fora do Paraná foi no Ginásio do Corinthians, em São Paulo. A equipe de basquete do Arapongas, que fora campeã paranaense, participou de um torneio na capital paulista. Corinthians e Sírio (SP), Vasco da Gama (RJ) e Cruzeiro (RS) participaram. O Corinthians foi campeão. O Arapongas perdeu todos os jogos, mas ele diz ter vivido momentos inesquecíveis. O evento reforçou o propósito dele: se tornar o narrador titular da emissora. Mas a Cultura já tinha um titular. Sem esperanças na emissora, aceitou um convite do radialista Antônio Penharbel Filho, de Apucarana, para trabalhar na Rádio Cultura, na Cidade Alta.

Em Apucarana, se tornou o narrador oficial. Contudo, não durou muito. Convidado, se transferiu para a Rádio Cultura de Maringá. Mas na Cidade Canção, a concorrência era acirrada. À frente dele estavam Antônio Paulo Pucca, Ferrari Júnior e Elias Harmuch. Na transmissão dos Jogos Abertos do Paraná, uma gripe deixou Elias e Ferrari afônicos. Pucca fez algumas narrações, mas o forte dele era o futebol; ele assumiu a narração das modalidades. Para melhorar a performance de radialista, transmitia até eventos religiosos, como ocorreu nas celebrações do aniversário de Mandaguaçu, vizinha de Maringá.

O destino o trouxe de volta a Londrina. Uma emissora católica, a Rádio Alvorada, o contratou para comandar o departamento esportivo. Com o slogan: “A emissora da família paranaense”, era dotada de modernos equipamentos e mantinha grande audiência no Paraná. “Ali senti que começava a me firmar na carreira”, diz. Apesar de estar no esporte, cobria outras áreas, inclusive, a visita do presidente da República, Ernesto Geisel, a Londrina. Na ocasião, ele usou o primeiro carro com VHF do rádio londrinense. Um fusquinha amarelo, que o saudoso Valdomiro Machado dirigia. A novidade melhora a qualidade às transmissões. 

Mas a passagem pela Alvorada foi curta. O então prefeito de Londrina, Antônio Belinati, comprara a Rádio Clube e fez uma proposta salarial irrecusável para ele, que aceitou. Usando a mesma tática, Belinati contratou profissionais de outras emissoras. Mas no quarto mês, a direção da Clube avisou que não tinha como pagar os salários da equipe. Eles se reuniram e resolveram comprar um horário na emissora. Assim se mantiveram empregados por um tempo, mas ele e outros da equipe retornaram à Rádio Paiquerê.

Mateus ficou cinco anos por lá. A carreira dele até ali havia construído estreita ligação com o Londrina Esporte Clube. Diz que só não acompanhou o título estadual do Tubarão, em 1962. “Estive em todos os jogos do LEC, inclusive, no Brasileiro, de 1977, e na Taça de Prata, de 1980”, conta. Para ele, a conquista mais emocionante da equipe londrinense foi o Campeonato Paranaense contra o Grêmio de Maringá, em 1981. Ganhou os dois jogos da final: 3X2 em Maringá e 2×1 em Londrina. Destaca também as vitórias, no Brasileiro de 1977 e 1978, contra Flamengo, Corinthians, Santos e Vasco da Gama. “Grandes feitos da história do clube”, afirma.

Mais uma rápida passagem por Maringá, em 1986, para trabalhar na TV Cultura, afiliada à atual Rede Paranaense de Comunicação (RPC). Era uma espécie de coringa: editor de esportes, locutor de estúdio, narrador de futebol e comentarista em um telejornal noturno. Nesse ínterim, a Paiquerê reestruturava a programação, mirando competições internacionais. O diretor da emissora, JB Faria, lhe perguntou: “Você quer voltar para Paiquerê e nos ajudar nessa empreitada?” “Aceitei de imediato porque tinha interesse em narrar eventos esportivos internacionais”, diz.

A primeira experiência dele em competições internacionais fora na Paiquerê, em 1985. O Brasil jogara contra o Paraguai, no Estádio Defensores del Chaco. Partida válida pelas Eliminatórias da Copa do Mundo de 1986. A Seleção Brasileira vencera por 2 X 0 com gols de Casagrande e Zico. Um elenco repleto de craques. Entre outros, Leandro, Oscar, Júnior, Cerezo, Sócrates, Éder e os autores dos gols. “Muita emoção na movimentada viagem, que era nossa primeira internacional”, descreve, citando que viajaram em um ônibus da Viação Garcia com mais de uma dezena de eufóricos torcedores.

Na Copa da Itália, 2006, no Estádio de Turim, em pé: Tatinha e Gil Rocha; sentados: JB Faria e J. Mateus

Daí em diante, a carreira internacional de J. Mateus decolou. Cobertura de nove edições da Copa América, das Olimpíadas de 1996 e das Eliminatórias e Copas do Mundo de 1990, Itália; 1994, Estados Unidos; 1998, França; 2002, Coreia do Sul e Japão; 2006, Alemanha; 2010, África do Sul e 2014, Brasil. Pela Paiquerê, viajou por 41 países e transmitiu futebol em 32 deles. Não faltam histórias. Como aquela na Holanda em que tinha de subir uma longa escada até a cabine de transmissão. Mesmo na Europa, nem todas construções eram adaptadas a pessoas com deficiências. 

Mateus estava disposto a encarar as dezenas de degraus, mas um conhecido dele, de físico avantajado, que o encontrara, se ofereceu para levá-los nas costas até a cabine. Ele entregou as muletas a um auxiliar e subiu às costas do colega. No meio do caminho ao dar um passo, o conhecido que o carregava  se desequilibrou. Ao se pender para trás, caiu em cima do joelho de Mateus, quase quebrando-o. Narrou o jogo com muita dor, que continuou nos dias seguintes. Ao chegar a Londrina, seguiu para o hospital, e logo se recuperou.

J. Mateus e os três livros que escreveu, nos quais relatou interessantes histórias do futebol.

Histórias assim estão no livro “ZYJ – minhas histórias do rádio”, autobiografia que lançou em 2023. A maior emoção profissional diz que viveu na Suécia, ao narrar um jogo do Brasil contra a seleção daquele país. Ele se recorda que, na Copa do Mundo de 1958, era um menino de 11 anos, que ouvia pelo rádio as narrações de Pedro Luiz e Edson Leite. O jogo que narrou foi, em 1988, no Estádio Rasunda, em Estocolmo. “Passou um filme na minha cabeça, me levando de volta a 1958, quando ouvia pelo rádio o Brasil campeão do mundo e, jamais imaginei que anos mais tarde estaria lá narrando um jogo da Seleção Brasileira”, lembra.

Os gatos Leozinho e Merlin estão no terceiro sono. Entrevista encerrada. Hora de ir embora. Mas Mateus sempre tem algo a dizer. Nos jogos que narrou da Seleção Brasileira entrava em cadeia com mais de 80 emissoras pelo Brasil. Ele recebeu o título de Cidadão Honorário de Londrina e Menção Honrosa da Assembleia Legislativa do Paraná. Além do livro já citado, é autor de “Londrina Esporte Clube – 40 anos” e “Onze contra Onze”.

J. Mateus no apartamento dele, no centro de Londrina, acima o quadro com as credenciais dos eventos esportivos dos quais participou, narrando pela Rádio Paiquerê

Viúvo, foi casado por 53 anos com Olésia Santoni de Lima. Pai de Ana Cláudia e Maria Cecília e avô de Bernardo e Bianca. Diz que a narração de futebol mudou muito. Mas ele procura manter o ritmo raiz que o consolidou. Com mais de 60 anos de carreira, continua a participar dos programas esportivos da Rádio Paiquerê. Faz as participações de casa. “Na minha idade e com meus problemas físicos, aproveito o que a tecnologia nos oferece, falando daqui com qualidade técnica”, afirma. Convite para trabalhar em São Paulo? Teve, mas preferiu ficar em Londrina e se tornar um pé vermelho que fez história e “correu mundo”…

O professor e apresentador de televisão, José Narciso do Prado, de Apucarana, me conduziu até Londrina.  

Fotos: Donizete Oliveira/Arquivo pessoal

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