Terra: 2 mil hectares por família


Durante a ditadura militar, 46.7% das famílias não tinham rendimento mínimo à altura de uma alimentação adequada, mesmo porque a contenção dos salários era o imperativo da concentração da riqueza
A modesta faixa que ousei instalar discretamente ante a mesa da Assembleia Nacional Constituinte valeram-me protestos de toda ordem. A verdade é que os súditos do latifúndio nacional e internacional aqui reinantes gritavam a plenos pulmões: Comunista! O seu lugar é Cuba, traidor!
Tentei esclarecer, afirmando que eu havia votado a favor do direito de propriedade, mas de nada adiantou. Em pouco tempo, sumiram com a minha bandeira.
É verdade que a minoria dos constituintes favoráveis a um planejamento rural do Brasil – falar em reforma agrária atiçava a fúria dos comandados por Ronaldo Caiado, líder da UDR (União Democrática Ruralista) – permaneceu solidária no tumultuado plenário.
Mesmo conhecendo a listagem dos maiores donos da terra brasileira, imaginei que pensar em grandes propriedades rurais de dois mil hectares por família não haveria de gerar tamanha rebelião.
-Pessoal, considero justo que o direito à propriedade rural deve contemplar por excelência as famílias que no campo vivem e nele trabalham, cabendo a destinação para a reforma agrária somente nas áreas que excedessem ao módulo máximo de 2.000 hectares por família.
É fácil constatar que os trabalhadores do campo são espécie em extinção. Até mesmo os conhecidos boias-frias do passado, dependurados em caminhões em nome da fuga dos direitos trabalhistas a eles negados, haviam desaparecido da paisagem modernizada pela mecanização da lavoura. Quando crianças, eles viviam na roça. O crédito dos pais era sempre consumido na compra de alimentos superfaturados na própria fazenda e viviam eternamente endividados. Hoje, filhos e netos dos ex-boias-frias costumam ser clientes na paisagem dos moradores de rua em todas as regiões do país.
Durante a ditadura militar, 46.7% das famílias não tinham rendimento mínimo à altura de uma alimentação adequada, mesmo porque a contenção dos salários era o imperativo da concentração da riqueza.
O milagre brasileiro: rodovias nas selvas, o orgulho por Itaipu, viadutos fantásticos e a própria transamazônica foram obras financiadas em dólares que elevaram em 30 vezes a dívida externa durante 21 anos.
Atualmente, Trump está de olho nas por ele denominadas terras raras da Amazônia ricas em manganês e nióbio, assessorado que é por levantamento aerofotogramétrico da Força Aérea dos Estados Unidos desde o século passado. Não é por acaso que os “irmãos do norte” estão habituados a ver o mapa do Brasil desprovido da Amazônia.
Pensando bem, área de 2.000 hectares por família que interesse pode despertar num grupo Rockffeler que se fez dono de 331.000 hectares em Mato Grosso, à Liquigás com 577.000 na região do Araguaia, a ponto do saudoso Dom Pedro Casaldáliga, então bispo da precária de São Félix haver afirmado: “Cada dia sentimos aqui – como povo e como igreja – a iníqua e sofisticada estrutura da opressão. Estamos condenados ao latifúndio capitalista”.
O governo federal? O que seria possível esperar, quando os generais-presidentes concediam deduções do imposto de renda a todos os grupos estrangeiros interessados em comprar terras que nunca existiram para os nossos pequenos agricultores, mas que sobravam para as norte-americanas Brazilian Land Cattle Packing ou a Universal Overseas Holding em Minas Gerais e Goiás, respectivamente?
Finalmente, ainda tentei lembrar que os países mais ricos do planeta não abrem mão de um planejamento agrícola altamente produtivo, mas o resultado de minha emenda constitucional nacionalista foi uma inevitável derrota.
(*) Tadeu França
ex-deputado federal constituinte
Foto: Arquivo pessoal