Um retrato dos anos de chumbo

A violência da narrativa contrasta com a frieza dos repressores e torturadores

De fácil leitura. O correr do texto é leve. Mas a linguagem é chocante. Li poucos livros pesados assim. Às vezes, me ponho a imaginar. Como um país pode chegar a esse ponto? Uma violência brutal, covarde e sórdida. Só mesmo uma ditadura civil/militar, como ocorreu no Brasil, pode criar um personagem como Sérgio Fernando Paranhos Fleury. Um homem poderoso, que em certos casos tinha mais poder até do que o presidente da República. O nome Fleury era sinônimo de medo. Causava pavor e abria portas, às vezes, literalmente.

No Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) Fleury reinou absoluto. Atuou em conjunto com o Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI). Aquele era um órgão estadual, criado em 1924, que serviu ao Estado Novo de Getúlio Vargas e à repressão pós o golpe de 1964; este surgiu em 1969 em apoio à Operação Bandeirantes. O livro “Autópsia do medo – vida e morte do delegado Sérgio Paranhos Fleury”, de Percival de Souza, em 650 páginas, revela e esmiúça terríveis episódios dos chamados anos de chumbo.

A violência da narrativa contrasta com a frieza dos repressores e torturadores. Delegados jogavam xadrez numa sala; na cela ao lado, um prisioneiro era torturado. Os berros não o incomodavam. A indiferença norteava aqueles algozes. Na vigência do Esquadrão da Morte, que Fleury foi acusado de comandar, delegados e tiras se reuniam para beber em um conhecido bar de São Paulo. Não raro, do porta-malas dos carros estacionados na calçada pingava sangue. Eram corpos que estavam ali à espera de serem descartados em algum lugar. Certa vez, um policial, copo de cerveja na mão, sorrindo sacou do bolso uma argola de metal, com uma orelha humana pendurada. Parte de um dos corpos que sangravam no porta-malas.

Os métodos de tortura eram variados. Diz o livro que no DOPS havia um poço de dois metros. Os presos políticos eram mergulhados nele. Tinham de ficar imersos na água o maior tempo possível. Ao se levantarem eram golpeados na cabeça. Quem tivesse mais fôlego adiava um pouco a morte. Também eram vítimas de afiadas peixeiras amoladas. Na tortura, cortavam-se os dedos do prisioneiro antes de matá-lo. Os gritos ecoavam pelos corredores do DOSPS. A sala do Fleury, conta Percival, era a mais temida. Vez ou outra tiravam um “presuntos” de lá.
Tanto que um dia a mulher de um delegado ao pegar um paletó dele para enviar à lavanderia se assustou com algo que caíra de um dos bolsos. Era um pedaço de dedo humano. Ela o questionou, e ele disse que matara um bicho estranho. Decepar dedos e descartar os corpos evitavam os exames de identificação pelas digitais. Em meio às atrocidades, o poder de Fleury predominava. Ao entrevistar testemunhas, Percival soube de muitos ocorridos no DOPS. Por exemplo, numa reunião, discutia-se o que fazer com determinado prisioneiro político. Os delegados não chegavam a um consenso. Fleury, que chamavam de Papa, se levantou e foi até a cela dele. Sacou a pistola com um silenciador e o matou. Retornou à reunião e disse que o assunto estava resolvido.

Mas “Autópsia do medo” não é só tortura e mortes. Traça um perfil de Fleury, revelando por exemplo, seus hobbies. Adorava ler revistas em quadrinhos e frequentar ambientes da chamada boca do lixo, no centro de São Paulo. E quem diria que o homem mais temido na ditadura, iria se apaixonar por uma anarquista, irmã de dois opositores ao regime? Aconteceu. Ele se encantou pela afável Leonora, com quem teve um ardente romance. Um irmão dela que vivia na antiga União Soviética perdera o passaporte. Ele não conseguiu outro e pediu ajuda da irmã. Após muitas tentativas frustradas de conseguir o documento, a aconselharam a procurar Fleury.

Ela foi. Conseguiu o documento e começaram um relacionamento. Ele se apaixonou. Ficaram juntos até a morte dele, em maio de 1979. A família dela não aceitava. Mas Leonora não desistiu. Com ela, o temido delegado revelava um lado ameno. Ganhou o apelido de “ronc, ronc” porque roncava ao dormir numa poltrona da sala dela. A amante guardou as cartas e bilhetes que recebia dele. Percival publicou alguns no livro. Um dia ao transitar por São Pulo no seu Puma, quatro rapazes passaram num fusca e mexeram com ela. Bastou um telefonema informando a placa do carro a Fleury. Em menos de duas horas, eles foram presos. Na delegacia, por sorte, passaram apenas por um esculacho de tapa na cabeça e foram liberados.

Acusado de comandar o Esquadrão da Morte, Fleury chegou a ficar “preso” alguns dias no DOPS, mas foi liberado. A morte dele é um mistério. Ao atravessar de um barco para outro em Ilhabela, litoral paulista, caiu e teria se afogado. As dúvidas aumentaram porque não foi permitida autópsia no corpo. Diziam que ele era uma espécie de arquivo vivo dos porões da ditadura militar/civil, portanto, teria sido morto pelo próprio sistema. Mas nunca se provou e, com o passar do tempo, caiu no esquecimento. No livro há uma sequência de mortes. A maioria dos que atuaram naquele órgão da repressão morreram de infarto, acidente ou alguma grave doença. Maldição? Perguntavam alguns.

“Autópsia do medo”, leitura obrigatória para entender mais o Brasil.