Crônica por encargo

Do padre Orivaldo Robles:
“Por tradição, a crônica é um gênero jornalístico. Está ligada ao jornal, à revista, à imprensa, seja diária, semanal ou mensal. A crônica é uma atividade sistemática. O Rubem Braga – que todo mundo cita até sem ler e muitos apenas leem sem citar – disse certa vez que a crônica é uma moléstia. Uma moléstia não é gripe, enxaqueca, fratura de tíbia ou tosse comprida. Moléstia é sinusite, tuberculose, gota, bico-de-papagaio. O sujeito acorda e vai dormir com ela. A crônica é isso: a obrigatoriedade do cartão de ponto. Como nenhum jornal aceita cronista que promete mandar matéria quando achar um bom assunto, é mais ou menos compreensível que a crônica, sendo assídua, aproveite os sonhos, o faz-de-conta, a inspiração do cronista. Na televisão – muito mais rara e menos definida – e no rádio a crônica pode ser substituída por imagens e música, sem que as pessoas reclamem e mudem de emissora. Na imprensa, o cronista costuma ser aguardado pelo leitor e tem o ar de ser estimado pelo dono do jornal, sem nem mesmo conhecê-lo pessoalmente. Mas convém ter cuidados: não pode ser enfadonho, prolixo, repetitivo ou professoral. O cronista precisa fingir que faz crônicas por divertimento e que trabalha por não ter o que fazer”.
O texto é uma das pérolas de Lourenço Diaféria (1933-2008) em entrevista de 2000. Tinha da crônica opinião modesta: “No jornal, a crônica é o intervalo do grande espetáculo. Não resolve nada (…). Só serve para dar um tempo de o sujeito ir lá fora, comprar amendoim, tomar café, espreguiçar-se. Talvez até seja uma inutilidade”. Católico praticante, escreveu em vários jornais de São Paulo. Com ele me correspondi brevemente nos anos 70. Lia-o toda semana na Folha de São Paulo. Mandou-me autografado seu livro, “Um Gato na Terra do Tamborim”, que as muitas mudanças e meu pouco cuidado fizeram-me perder. Para conhecer o Diaféria cronista, basta teclar no Google “Herói. Morto. Nós”. É sua crônica mais conhecida. Que, nos anos de chumbo, lhe valeu dois anos de prisão. Foi acusado de fazer pouco do duque de Caxias, patrono do exército. Bobagem. Ele apenas exaltou o sargento Sílvio Hollenbach que, no Jardim Zoológico de Brasília, se lançou no fosso das ariranhas, para salvar um garoto por infelicidade lá caído. Passeava com a esposa e os 4 filhos pequenos. Salvou o menino. Atacado pelos bichos, morreu de infecção, dias depois.
Por mim, Diaféria ombreia com nossos cronistas da melhor estirpe. Com Rubem Braga, Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Lya Luft, Rubem Alves, Luís Fernando Veríssimo, Frei Betto, Cony… Fez-me recordar a humilde crônica que, lá em 1958, publiquei numa revista. Reacendeu-me o gosto pelo gênero que presunçosamente teimo ainda em rabiscar. Vez por outra cometo algo razoável. Tenho autocrítica. Falta-me dom para coisas de requintado valor. Mas sigo aqui, bamburrando em garimpo exaurido. Há tempo, o programa “A Praça é Nossa” apresentava o personagem Paulinho Gogó, com o bordão: “Quem não tem dinheiro conta história”. É um pouco o que faço. Na falta de maior talento, conto histórias.
A forma como as recebem varia bastante. Há os que apreciam. Outros são amáveis: percebem que escrevo tirando leite de pedra. Também existe quem imagina que a gente escreve por falta do que fazer. Fazer o que, né?