Contribuição ao inventário da inteligência humana

De Marcos Lauer:
Descanso enquanto o arroz integral cozinha na panela de fogo lento, contínuo e nutricional. Espero pela hora mais clara do dia para integrar o movimento repetitivo do cotidiano. Abano levemente a testa, diferente de quem, no deserto, sua as têmporas molhadas pelo esforço repetitivo de uma travessia voluntária.
Ainda é cedo. Os ponteiros do relógio marcam pouco mais de sete horas. Para o arroz não existe hora. Ele precisa cozinhar na panela de barro comprada via internet de moradores indígenas remanescentes de uma tribo do Espírito Santo.
Deliro enquanto o arroz queima na panela de argila nobre, extraída de forma artesanal, por mãos que ganham a vida amassando o pão do dito macabro. São os desígnios de uma vida, cuja passagem pela terra está fossilizada para estudos sobre a evolução do homem.
De soslaio posso ver libélulas em rodopios ao redor do prato ou um bando de micro-leões vasculhando o armário da cozinha. Lêmures passeiam no meu pensamento recheado de lapsos que insistem em provocações das mais diversas.
Simpatizantes ou adversos requerem de mim o mesmo empenho em separar o joio do trigo feito a parábola do sagrado livro exposto com denodo no criado-mudo do quarto ao lado.
Sinalizei, há alguns dias, uma vontade inescrupulosa e aflita em rever anotações não muito recentes. Deveriam servir de alento para uma reflexão, se não religiosa, ao menos com pareceres logísticos de uma peregrinação. No entanto devo sublinhar com real imparcialidade o lado irrepreensível da súplica. Bastaria um – em nome do pai – para reparar todos os pecados cometidos inadvertidamente ao longo desta existência pouco corporativa.
A propósito, não fosse este o motivo de tantos percalços e desentendimentos, minha carreira estaria bem melhor distribuída em prateleiras de bibliotecas alhures. Por isso descanso enquanto o arroz integral cozinha na panela sob fogo repetitivo.
Ouço barulho de alguma coisa mexendo no portão, mas não posso sair com arroz cozinhando na panela barroca. Com cuidado, ponho-me em pé e caminho pelos aposentos sem deixar rastros. Espio pela cortina parcialmente fechada, de forma com que o vento possa entrar sem desarrumar o vaso de flores cuidadosamente instalado ao lado esquerdo da ventarola. Também sobre a mesinha um clássico de bolso traduzido por Alfredo em que relata a percepção do mundo sob a ótica de Emerson na ação de oito grandes representantes da nossa história sempre contemporânea.
Contive minha expectativa ao acontecimento opróbrio e volto ao descanso até o arroz finalmente ficar pronto. Vou deixá-lo descansando até a hora do almoço previamente recomendado pelos homens de branco. Recentemente fui submetido a uma bateria de exames em decorrência da idade média. De todas as doenças presumíveis, as prescrições versaram sobre cautela, dieta e uma receita para compra de um par de óculos de grau.
Agora sim tem alguém batendo na porta e resolvo abri-la depois de recompor-me abotoando as últimas casas da camisa de algodão fio 80 e verificar o zíper da calça jeans totalmente fechado.
__Desculpe-me, mas o senhor não ouviu alguém mexer no portão… Fico apavorada só de pensar ser um ladrão… Hoje em dia a gente tem que tomar muito cuidado, o senhor não acha, perguntou-me apreensiva uma senhora com vestido de flores amarelas enormes e colibris cantarolando em volta da cabeça ornamentada por grampos salientes no espesso cabelo desgrenhado.
__Não só cuidados, minha senhora, mas também remédios, respondi em tom ríspido que quase fez a mulher bater a cabeça no batente da porta após tropeçar no capacho muito alto que lembrava a textura de um xaxim descartado num canto qualquer de uma floricultura.
Que homem insuportável vociferou a mulher depois de entrar em seus aposentos sem conseguir a ajuda pretendida para alegrar sua fantasia outorgada pelo iminente ladrão. Pude ouvir os resmungos, mas nada que me obrigasse a uma nova intervenção. Não costumo interagir sempre que solicitado.
Sem mencionar a irrelevante veracidade de um conto borgeano, mastigo repetidas vezes o mesmo bocado de arroz enquanto ouço novamente o portão se mexer. A mulher – presumo – não vai voltar, mas é uma pena que o gergelim tenha acabado. Ainda bem que os tonéis estão cheios de utilidades. Depois do arroz, sinto-me apto a cunhar espadas e até mesmo as moedas de Caronte. Estou pronto para a travessia. As aventuras, agora, deverão ser relatadas do outro lado do rio, na visão de um soldado do front, conforme rege o estatuto ou segundo as normas do regimento.
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(*) Marcos Lauer é jornalista