Legado
Do jornalista Ricardo Mota, de Maceió (AL):
Que compromisso nós temos para com a humanidade? É uma pergunta simples, que cada um de nós já há de ter feito a si próprio, mesmo que ela tenha sumido na imensidão de preocupações que nos arrastam no cotidiano. Viver é, também, cuidar do legado que deixaremos – queiramos ou não – aos que virão depois de nós. E o fazemos ainda que não percebamos com clareza os objetivos de nossas ações. Talvez a tarefa mais inexata e inexpiável com a qual nos deparamos, se dela temos consciência, é a de lapidar pessoas, dando-lhes a espinha dorsal de sua personalidade.
Não apenas para perpetuar a nossa carga genética, uma “imposição” da biologia, mas também – e talvez principalmente – para que possamos continuar a interferir, independentemente da nossa vontade, em algum pedaço do destino do mundo. Por muito pouco que isso possa vir a ser.
Os filhos, se os temos, são o nosso maior legado (o que vale para os agregados). Deles devemos cuidar bem além do que fazem as outras espécies. E muitas delas, tantas vezes, o fazem melhor do que nós. As nossas formas de organização e convívio são muito mais complexas e nos exigem a capacidade de decidir sempre – para o bem e para o mal.
Dar amor, amparo, conforto e – provavelmente o mais difícil – ajudar a construir um caráter, com a precariedade e as incertezas que carregamos, mesmo assim, podem fazer uma notável diferença no meio social. A dolorosa negativa ou a reprimenda mais brusca – quando é o que nos mandam razão e sentimento – poderão representar o alicerce, em dado momento, da necessária construção de uma personalidade mais humana, menos egoísta (uma condição inevitável da nossa natureza), que possa compreender que “é impossível ser feliz sozinho”.
Nós somos, embora não os únicos, responsáveis diretos pela essência das nossas crias. A capacidade de discernimento, que adquirimos ao longo da existência, não pode impedir que a nossa “paixão permanente” cometa os seus próprios erros. Mas pode ajudá-la a dar a estes erros uma motivação mais nobre (ou, ao contrário, quando o defeito é de fábrica).
Quantos, da minha geração, não aprenderam a “amar” a humanidade, se entregando de corpo e alma à tarefa de construir uma nova sociedade, justa, harmonizada, solidária? E ainda quando a maturidade não nos colocava no devido lugar das nossas possibilidades!
Mas tantos, entre nós, nos mostramos incapazes de amar alguns poucos, às nossas vistas, por nos parecer um fardo insuportável e até dispensável.
Que não se confunda o amor com a traiçoeira permissividade, que há de resultar em saboroso retorno imediato, mas carrega para o futuro as suas consequências nefastas.
O desejo de construir um mundo melhor para os “nossos filhos” não há de nos fazer negligenciar na missão de fazer de nossos filhos a herança mais positiva que deixaremos para esse mesmo mundo.
Uma das melhores frases que guardo de Rubem Fonseca, escritor que li muito entre as décadas de 1980 e 1990, é:
– A principal obrigação de uma geração é fazer a seguinte melhor do que ela própria.
Será, como sempre, a utopia a nos mover?
Parece-me uma possibilidade plausível, o que nos cobra Rubem Fonseca, se o nosso trabalho, árduo e contínuo, não descuidar dos que estão tão mais próximos a nós.
Não tentar, errando e aprendendo, pode ser a nossa maior covardia.