Da professora Beatriz Fleury e Silva:
Não irei discorrer sobre os bairros ou zonas onde o referido instrumento foi permitido e quais os índices aprovados ou em aprovação, pois mesmo que importante e questionável, iria abrir demais este debate. Pretendo, sim, fazer um breve relato histórico, procurando chamar atenção para as distorções que vêm sofrendo este instrumento no município, em especial o proposto para esta próxima audiência.
Primeiramente é necessário caracterizar o instrumento da Outorga Onerosa. Seus fundamentos remontam a década de 70, incluindo neste período o MNRU-Movimento Nacional pela Reforma Urbana que resultou no art. 182 da Constituição Federal e incorporado por fim na Lei Federal 10.257/2001- Estatuto da Cidade. Desde a década de 80 no entanto, variações deste instrumento sob nome de solo criado ou outros, já eram aplicadas em muitos municípios brasileiros. Mesmo que com diversos objetivos em sua conceituação, predominam os quais buscam gerar recursos financeiros para infra-estrutura com fins sociais, sendo também o objetivo privilegiado pelo Estatuto da Cidade. Exemplo encontra-se na nossa capital Curitiba, através da lei 11266/04, Foz de Iguaçu lei 2.177/98, Santo André 8696/04 e Natal 027/2000 entre outros, que tem seus recursos direcionados para programas de habitação social, em função da necessária distribuição no país da mais valia. A grande maioria das cidades abre, no entanto, a possibilidade de investimentos sociais mais amplos e variados, como programas em áreas de interesse social, saneamento básico, regularização fundiária, criação e preservação de áreas verdes, preservação do patrimônio cultural e urbanização de favelas, de acordo com as diretrizes estabelecidas pelo EC.
O instrumento da Outorga Onerosa do Direito de Construir, mesmo que sob outra denominação, surge em Maringá primeiramente na lei 336/99 instituindo incentivo construtivo (aumento de coeficiente de aproveitamento ou altura da edificação) em quatro áreas da cidade (ZC, ZCS e ZR 3 e 4) para implantação de Programas de Habitação de Interesse Social (HIS) no município. Naquela época foi uma iniciativa de certa forma pioneira, em se tratando de município de porte médio, pois apenas algumas metrópoles o possuíam, uma vez que o referido instrumento era anterior ao Estatuto da Cidade de 2001. Entretanto, talvez pouco ou nada foi direcionado para produção habitacional, pois somente 527 unidades, segundo dados da prefeitura municipal, foram construídas entre 2000 a 2007.
Após a aprovação do Estatuto da Cidade em 2001 e do novo Plano Diretor Municipal em 2006, esperava-se a criação da lei da outorga tal qual preconizada no Estatuto, entretanto, aprova-se a lei complementar 648/2007 que dispõe sobre outorga onerosa do direito de construir mediante contrapartida ao Poder Público Municipal, além de condições especiais de recuo obrigatório frontal e ocupação de solo. Em seu art. 1º, fica claro que foi única e exclusivamente para atender a iniciativa privada distorcendo completamente o espírito do instrumento, uma vez que trata da concessão da outorga onerosa do direito de construir previsto no art 134/2006 para ampliação de obra localizada na Zona 01, quadra 43, data9/10 desta cidade, no caso, onde se localiza a então denominada Empresa Aspen Park Shopping Center hoje Maringá Park.
Lembro-me que esta foi umas das primeiras matérias em discussão no Conselho de Gestão e Planejamento Territorial do qual eu fazia parte representando a UEM, gerando longo debate em função da estranheza causada à maioria pela forma como foi elaborada a referida lei da outorga onerosa, ou seja, direcionada a caso particular, distinto do preconizado na lei federal 10257/2001 do Estatuto da Cidade. Outro agravante foi a ignorância dos membros sobre o valor da contrapartida, pois não havia ainda uma lei de outorga onerosa que valesse para todo município como deveria ser. Não sendo unânime a decisão, eu particularmente votei contra, aprovou-se e encaminhou-se à Câmara dos Vereadores a solicitação de concessão da ampliação de taxa de ocupação para 75% e dispensa de recuos frontais para o referido shopping.
Em 27/06/2008, uma segunda lei, de n° 721/2008, autoriza outorga apenas na ZC- Zona Central da cidade, expandindo para um maior número de zonas e especificando a fórmula para cálculo da outorga. No entanto, em 11/03/2009 esta lei é revogada pela lei no 760/09, a qual dispõe sobre a outorga onerosa do direito de construir, através de contrapartida ao Poder Público municipal. Esta última destina os recursos da outorga onerosa para a execução de programas habitacionais de interesse social e dá outras providências. Além disso, impede a concessão da outorga para as Zonas 1, 2 e 5 (preservando suas paisagens e densidades acertadamente) e outras áreas que estiverem em situações urbanas frágeis.
A referida lei ainda vincula ao repasse do recurso arrecadado para o Fundo Municipal de Habitação podendo ser utilizado somente para habitação social (moradia e infra-estrutura). No meu ponto de vista, foi uma excelente decisão, estávamos caminhando para a equidade social.
Todavia, em menos de 1 ano, ou seja, em janeiro de 2010, revoga-se a lei e aprova-se uma terceira lei da outorga, a lei no 795/10.
Em minha avaliação, esta lei apresenta três equívocos. A primeira está no art.4°, que define para todas as zonas o mesmo gabarito máximo como outorga (cota 650). Entendo que o fato de padronizar a altura das edificações prejudica a paisagem urbana e as peculiaridades de cada zona. Poderiam incidir distintas alturas máximas condizentes com as características de cada zona, proporcionando identidade à paisagem. A outra limitação está em não definir referências de valores a serem pagos quando da concessão da outorga. Por fim, o art. 10-A, item c, chama atenção para possibilidade de regularização de edificação que tenha ultrapassado o coeficiente de aproveitamento e/ou altura máxima de edificação mediante aquisição de outorga, mantendo-se o que já era permitido na lei 760/09 e configurando assim uma espécie de anistia.
Por fim, depois de diversas leis alteradas em tão pouco tempo, aprova-se a lei 908/2011 determinando em seu art. 3º que outorga onerosa é instrumento destinado a financiar a execução de programas e projetos habitacionais de interesse social, priorizando famílias de até 3 salários mínimos. Esta lei deixam claras as formas de aquisição de outorga bem como a contrapartida de quem a adquiriu, sendo feita através de doação de imóvel ou repasse ao FMHIS- Fundo Municipal de Habitação de Interesse Social.
Finalmente, formula-se em Maringá uma lei que atende ao que foi privilegiado no Estatuto da Cidade, ou seja, recuperação pública da renda da terra urbana. Com isso tem-se um formato necessário à cidade que permite ao poder público promover eficazmente a redução das desigualdades social da cidade, fator importante uma vez que ações para redução destas desigualdades têm sido tímidas. Digo isso, pois historicamente não se acomodou a população de baixa renda com as mesmas qualidades urbanas tão exaltadas com as que vivem as demais rendas, tendo o alto valor da terra, como mesmo afirmam os gestores, obrigando a instalar os conjuntos habitacionais em áreas periféricas, especialmente os direcionados a famílias de 0 a 3 s.m que hoje estão residindo fora do perímetro urbano em Distritos (ver conjuntos do Minha Casa Minha Vida).
Portanto é de suma importância que o fundo municipal de habitação seja engrossado com as verbas arrecadadas da outorga, ao contrário do que tem sido declarado pelo Secretário de Planejamento Sr. Laércio Barbão, desta forma se conseguirá aquisição de terrenos mais inseridos na cidade. Se houver a pulverização para áreas que não estejam diretamente vinculados a este tema (como proposta nesta próxima audiência), corre risco o atendimento ao Estatuto e a cidade para todos.
Assim, feitos estes argumentos, destaco que não podemos concordar com a alteração deste instrumento da forma como proposta na próxima audiência, que mesmo pretendendo contemplar o artigo 31 do Estatuto e atender a diversidade de finalidades previstas a saber: regularização fundiária; execução de programas e projetos habitacionais de interesse social; constituição de reserva fundiária; ordenamento e direcionamento da expansão urbana; implantação de equipamentos urbanos e comunitários; criação de espaços públicos de lazer e áreas verdes; criação de unidades de conservação ou proteção de outras áreas de interesse ambiental e proteção de áreas de interesse histórico, cultural ou paisagístico; colocará em risco o atendimento a moradia social na cidade, pois entendo que ao menos as finalidades “ordenamento e direcionamento da expansão urbana e implantação de equipamentos urbanos e comunitários” não deveriam estar inseridas por 2 motivos: primeiro por existir outros instrumentos e dispositivos mais adequados e controláveis que podem colaborar com os mesmos (ex. lei federal 6766, IPTU progressivo, entre outros) e segundo pela perspectiva de perpetuarmos o histórico direcionamento em favor da iniciativa privada realizado nesta cidade, que tem privilegiado áreas estratégicas para o capital. Não deixemos que a função social da terra em Maringá fique em risco e a desigualdade mantida ou acentuada!
_______________________________
(*) Profa. Msc. Beatriz Fleury e Silva
Docente do curso de Arquitetura da UEM e pesquisadora do INCT/CNPq-Observatório das Metrópoles
Doutoranda em Habitat pela USP
Ex-conselheira de Planejamento e Gestão Territorial