O compadre

Do padre Orivaldo Robles:
padreorivaldoLá na sua terra ele foi registrado como Nivard de Vries. No seminário nós lhe aportuguesamos o nome para Nivaldo. Era holandês, como todos os nossos formadores. Entre si usavam, quase sempre, a língua do seu país, hábito que, de vez em quando, gerava alguma confusão. Como no dia que Padre Edwin Smeets resolveu contar às empregadas, na cozinha, um caso divertido. Ele ria de lacrimejar os olhos, enquanto elas se olhavam, apalermadas. Até ele perceber que falava holandês com três simplórias domésticas, que só compreendiam português, e olhe lá.
Com sua careca luzidia e óculos de fundo de garrafa, Padre Nivaldo compunha uma figura original. Foi o primeiro ciclista que vi pilotar bicicleta motorizada. Apaixonado por futebol, em algumas ocasiões, com o cinto de couro que lhe chegava aos pés, prendia o grosso hábito de brim de cor indefinida e entrava em campo conosco. Com frequência maior, entretanto, por causa da miopia severa, punha-se no meio da torcida, onde não cessava de ditar ordens e gritar palpites. A exemplo da vez que um jogador levou uma bolada nos genitais e se atirou ao chão, em contorções de dor. Aos brados, ele exigia providências: “Alguém aí faça massagem nele. Não há ninguém para atender o coitado”? Não havia. Pelo menos dessa forma. Abanaram o infeliz, movimentaram-lhe os braços, trouxeram água, mas massagem ninguém fez.
Nivard ficou conosco não sei por quanto tempo. Até que se transferiu para alguma paróquia que não recordo. Não dava aulas. Tinha a função de diretor espiritual e confessor. Isso ele fazia muito bem. Dele recebi uma das mais preciosas lições de formação espiritual. Passadas quase seis décadas, ainda a conservo na memória.
No rígido sistema de internato daquele tempo, o seminário oferecia uma vida monótona. O regulamento secionava, até nos minutos, o nosso tempo. Os dias seguiam iguais, em repetição tediosa. Qualquer fato inusual se transformava num acontecimento. Foi o que se deu.
Frequentava com regularidade nossa cozinha um mendigo, que vinha pedir comida. As funcionárias faziam-lhe o prato e o levavam ao banco em que ele ficava esperando. Comia antes de nós. Em silenciosa fila rumo ao refeitório, passávamos perto. Arriscávamos uma espiada no prato dele para conhecer nosso cardápio.
Não levou muito tempo, um gaiato deu-lhe apelido. Sabe-se lá por que estranha razão, “compadre”. Pegou. Seu nome era desconhecido. Ninguém falava com ele. Mas para todos tornou-se o compadre. Alguns riam, caçoavam. Diferente de nós, Padre Nivaldo lhe dava atenção. Mantinha longos papos com ele.
Uma noite, na capela, falou-nos do compadre. Com calma, mas também com grande seriedade. Disse: “Temos que agradecer a Deus por nos permitir, quase todos os dias, dar um prato de comida ao Sr. José. Deus nos dá a grande honra de matar a fome de Jesus. O Sr. José é, para nós, o próprio Jesus com quem repartimos a comida que Deus não deixa faltar em nossa mesa”.
Caiu-nos a cara de vergonha. Ninguém mais chamou o Sr. José de compadre. Nem riu dele. Aquele homem tinha nome. E também dignidade para receber o tratamento de “senhor”. Como se devem tratar as pessoas de respeito.
Foi o modo singular, criado por um modesto padre holandês míope e careca, de transmitir a um bando de tolos brasileirinhos o antigo e sempre novo preceito do Mestre: “O que fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim que o fizestes” (cf. Mt 25,40).