O lockdown é inevitável. A fome, não

O toque de recolher e a proibição ainda mais restritiva de circulação de pessoas, o lockdown, de alcance regional ou apenas municipal, e por tempo bastante limitado, têm sido adotados por alguns governadores e prefeitos. O colapso da rede hospitalar e o aumento de infecções e mortes pela covid-19 têm determinado a tomada de decisões tão drásticas. O resultado em geral é satisfatório, diminuindo um pouco a pressão sobre os hospitais e a elevação das taxas de infecção, mas claramente insuficiente para o enfrentamento exitoso da pandemia. (Cientistas, infectologistas, médicos e profissionais da saúde, em geral, recomendam um lockdown em todo território nacional, por um período de 14 a 21 dias).

Solapado por empresários, por parte da população, em especial dos mais jovens – o toque de recolher, decretado por estados e municípios, foi especialmente desautorizado, boicotado e subvertido por Jair Bolsonaro. As decisões regionais visando o isolamento social, corajosas e ousadas, foram por ele questionadas no STF. A Corte Suprema julgou, no dia 8 deste mês, que até mesmo os cultos religiosos ficam proibidos, quando em vigência decreto estadual ou municipal de toque de recolher. De forma quase insana, Bolsonaro chegou a cogitar da decretação do estado de sítio para intervir em estados e municípios. Mais do que isso: cogitou recorrer às forças armadas para impor medidas ainda mais autoritárias. O ministro da Defesa e os comandantes militares repeliram a iniciativa presidencial e foram sumariamente demitidos.

Bolsonaro é o responsável pelo descontrole da calamidade sanitária em que o país se encontra. No início, desdenhou do uso de máscara; promoveu e incentivou aglomerações; não determinou a realização de testes em massa; não adquiriu as vacinas, que tanta falta fazem nos dias de hoje. Repete o discurso populista da volta ao trabalho, incentivando a circulação de pessoas e do vírus. Pouco fez para evitar a quebra de pequenas e médias empresas, do desemprego e da fome que se alastra por milhões de lares, notadamente dos trabalhadores informais e mais vulneráveis.

O auxílio emergencial inicial de R$ 600,00 foi pago até agosto de 2020. A partir de setembro, foi reduzido para R$ 300,00 e estendido apenas por mais quatro meses. Estimativa da Fundação Getúlio Vargas mostra que, entre agosto de 2020 e janeiro de 2021, 18 milhões de pessoas passaram a viver em situação de extrema pobreza. Dos R$ 322 bilhões previstos inicialmente para o plano emergencial, o governo deixou de gastar R$ 28,9 bilhões. Esse valor poderia ter mantido, segundo ainda a FGV, todos os 66 milhões de beneficiários da primeira etapa, evitando o aumento da fome e das desigualdades sociais.

Ao invés de continuar insistindo na volta ao trabalho, Bolsonaro deveria decretar o estado de calamidade pública restabelecendo, com o aval do Congresso, o orçamento de guerra e o piso emergencial inicial de R$ 600,00. (Cf. Folha de São Paulo, de 7/4/21). Só agora, em abril de 2021, foi retomado o pagamento do novo auxílio emergencial, com valor médio pífio de R$ 250,00, e para atender um número menor de pessoas.

Preocupados muito mais com as eleições presidencial e congressual de 2022, de costas para a calamidade social e sanitária que atinge o país inteiro, Bolsonaro e parte do Centrão não mediram esforços para aprovação do orçamento deste ano, privilegiando as forças armadas e a execução de obras que possam ser inauguradas no período eleitoral. Assim, por exemplo, só para emendas parlamentares foram destinados R$ 48,8 bilhões. (Devido a grande pressão da mídia, os congressistas e o governo estariam revendo esse valor). Estamos alcançando o inimaginável número de 350 mil mortes por covid.

Para deter a propagação do vírus, a ocorrência de maior contaminação e de mais mortes, o toque de recolher e o lockdown têm sido inevitáveis. A fome, contudo, não é inevitável. É uma questão de prioridade política.

(Foto: Prefeitura de Araraquara)