A primeira professora na escolinha da roça

Os pés de café pujantes. Parecia uma floresta. A gente cortava pelo meio. Uma trilha estreita, batida, que desembocava numa estrada pedregosa. Terra do seu Fagundes. Um homem que andava de preto e tinha fama de brabo. De vez em quando a gente furtava umas laranjas cascudas e doces, cujos pés se avizinhavam à nossa passagem.
O sol radiante num infinito azul. O tiziu e a rolinha fogo-apagou emendavam o canto. Toda tarde a gente ia à escola. Os cadernos e a cartilha Caminho Suave num embornal. Camisa branca e calça azul marinho. De tergal. Um tecido fino, mas resistente. Os pés em contraste com o uniforme, pois íamos descalços. Andar descalço na roça era quase uma regra. Poucos meninos e meninas, naquela época, usavam calçados. Geralmente, ficavam reservados para a missa aos domingos e os eventuais casamentos.
Das laranjas furtadas, as que a gente não chupava, enchia de palitos. Cabeças de gado na fazendinha. Nas brincadeiras, havia casinhas, chiqueirinhos, currais e tudo que lembrava o campo. A criançada tentava transformar a vida ao seu redor numa miniatura. Quase tudo que os adultos faziam, meninos e meninas reproduziam nas brincadeiras embaixo da sombra de alguma árvore. Quando, não, havia o futebol improvisado com bola de meia e estrutura do gol improvisada com galhos secos.
Naquele dia, eu estava inquieto. Ir à escola pela primeira vez soava como palavra de ordem. Significava que eu passava a ter um compromisso diário. Não mais teria todo o tempo para brincar de fazendinha. Mas aquele dia era especial. A professora, eu já conhecia. Era vizinha de sítio. Benedita Domingues de Morais, filha da dona Francisca, uma mineira que contava arrepiantes causos de assombração. Eu saí de casa com meu sobrinho quase em cima da hora. A escola ficava a cerca de três quilômetros.
Chegamos. A porta estava fechada. Ouvimos a voz da professora, que explicava as letrinhas. Nem batemos. Empurramos levemente. Com vergonha, ficamos estáticos. Benedita pediu para a gente entrar e se acomodar numa carteira. Aproximou-se. Puxou uma cadeira e sentou-se do meu lado. Mirou nos meus olhos e pediu meu caderno. Ela abriu na primeira folha e fez um monte de bolinhas.
Sua mão morena, enfeitada de anéis e unhas esmaltadas, pegou levemente a minha e me fez copiar aquelas bolinhas. Meu lápis preto era robusto, quase igual àqueles usados para traçar riscos em madeira nas construções. Ela me ajudou a fazer uma, duas, três linhas. Devagar deixou minha mão e pediu que eu continuasse a preencher a folha de bolinhas.
Com meu sobrinho fez a mesma coisa. Para mim, e imagino que para ele, custosa tarefa. Minha mão parecia chumbo. Forçava o lápis feito uma ponta de ferro tentando perfurar um objeto sólido. Mas devagar fui pegando o jeito. Da letra “o” passei à “a”. Até que dali um uns dias havia desenhado todas vogais, consoantes e alguns números.
Minha irmã me ajudava em casa. Depois vieram as questões de matemática, as cópias da cartilha, os ditados e as primeiras tentativas de leituras. Não demorou muito para eu desenhar meu nome. Do que imaginei ser ruim ficou bom. Em casa eu tinha uma desculpa. Algumas vezes, deixava de debulhar milho para porcos e galinhas porque tinha de fazer tarefas da escola. Meu pai ficava uma onça, mas cedia. Analfabeto, ele sempre quis que eu estudasse.
Logo comecei a ler as primeiras lições da cartilha “Caminho suave”. Para muita gente, uma espécie de atestado de leitura. A Loteria Esportiva me ajudava. Eu praticava tentando ler o nome dos times que se confrontavam na cartela de aposta. Meus irmãos sonhavam em fazer 13 pontos. Nunca conseguiram.
Dia do Professor, 15 de outubro! Saudades da minha primeira professora. A incansável Benedita. Que percorria alguns quilômetros, a pé, todos os dias, até a escolinha de madeira, cercada de balaústre. Chamava-se Pedro Miguel Costa. Na zona rural de Califórnia, no Norte do Paraná. Ao me lembrar dela minha homenagem aos professores.
Tempos difíceis. De desafios, mas também de uma incógnita esperança. A gente nem imaginava, mas tinha uma vida longa pela frente e um mundo infinito a ser lido e interpretado.
Nas fotos, a primeira página do meu primeiro caderno escolar. Velhinho. Virando pó. Mas guardado até hoje.
(*) Donizete Oliveira, jornalista e historiador