Dentes, a dor que azucrinava nossa vida

O boticão, semelhante ao que era usado pelos dentistas, antigamente

Ele correu. O dente saltou da boca. Estava envolto a um barbante preso ao pé da mesa. O menino Pedro, nosso vizinho de roça, levou a mão ao rosto e chorou. Cuspiu sangue. Ele perdera mais um dente. A técnica do barbante era usada para arrancar aqueles que amoleciam, mas resistiam em cair. Dente podre azucrinava. Dor. Inchaço. Se livrar dele era um alívio. Como se curar de uma doença.

Eu perdi quatro. Apodreceram. Se a coisa se agravasse, o pai levava ao dentista. Quando a gente morava no oeste do Paraná, ía a Tuneiras do Oeste. Um dentista de outra cidade atendia lá. Aquelas cadeiras enormes. O sujeito sentava; ele em pé, ao lado. Boticão na mão. A gente chamava de torquês. Aquelas de arrancar pregos.

Às vezes, até sem anestesia extraía o dente podre. Ou pedaços dele. O sangue jorrava. As lágrimas escorriam. Em casa, a mãe fazia banhos de vinagre com sal. Até desinchar. Proibido andar no sol. Para não arruinar. Ordenava. A gente permanecia em casa. De repouso. Doente? Não, arranquei um dente.

O tal tratamento de canal. Uma vez vi um homem com um buraco no rosto após tratá-lo. De tanto pus, furara pelo lado de fora. Entre a gente, minha irmã inchava mais o rosto ao fazer o procedimento. Ela amarrava um lenço entre a cabeça e o queixo para proteger os ingredientes do curativo que minha mãe fazia para amenizar o inchaço.

Em Apucarana, havia um dentista conhecido. O Damião. Atendia na praça central. O pai levava a gente lá. Época em que já fazia restauração. Um material preto, pesado. Igual estanho. Usado mesmo nos dentes da frente. A gente sorria com aquelas marquinhas escuras. Mas ninguém ligava. Queria mesmo era se livrar dos dentes podres.

As dentaduras eram pesadas. Com dentes enormes. Às vezes, nem se encaixavam na boca. Mas se dava um jeito de ficar com elas. Era o que tinha. Minha mãe por muitos anos ficou sem dentes na boca. Ela cortava certos alimentos aos pedaços para comer. Até que recebeu uma dentadura. Em cima e embaixo da boca. Não a ajudou muito. Só usava para sair de casa. Prefiro ser banguela a ficar com essa pedra na boca. Reclamava.

Meu pai preservou os dentes. Antigamente, era costume colocar uma lasquinha de ouro nos dentes frontais. Ouro mesmo. Garantiam. Ele tinha uma. Pôs quando era jovem, no interior paulista. Ele quase não ia ao dentista. Nunca o vi com dor de dente. Ao menos não se queixava.

A escovação dos dentes seguia a rotina dos banhos em bacias. Uma vez por semana. Com pasta Kolynos. Aquele tubinho tinha de durar um ano. Se acabasse antes, os pais avisavam que estava gastando muita pasta de dente. A escova era dura. O leva e trás do escovar machucava a gengiva. Mas se dizia que era normal, pois estava limpando sujeiras profundas. Hoje, a gente sabe que não. A escova deve ser macia e suave.

Poucas coisas tiravam as pessoas do eito da roça. Dor de dente era uma. De repente, o sujeito rumava para casa com a mão no rosto. Dente arruinado. Antes das restaurações, tinha gente que mandava arrancar todos. Mesmos os saudáveis. Dizia que não queria sofrer mais tarde. Era comum nas refeições fulano cortar a carne aos pedacinhos. Não tinha dentes para mastigar.
Faz alguns anos, entrevistei o dentista Verandy Vieira de Souza Leite. Um dos mais antigos do norte do Paraná. Chegou a Apucarana em 1952. Na entrevista, ele, que morreu há três anos, contou as dificuldades da época. Sem os tratamentos e técnicas atuais, disse que a solução era eliminar os dentes arruinados. Afirmou que extraíra mais de 70 mil. “Antes da restauração, não tinha outro jeito, extraía para aliviar o sofrimento das pessoas”, disse.

Contudo, a maioria vivia sorrindo. Talvez, a felicidade daquela gente estivesse na alma. Não nos dentes.


(*) Donizete Oliveira, jornalista e historiador.

(Foto: Simpatio)