As lições de vida na crônica de 2015

A última edição de 2021 da revista digital Magazine Icasaa, do Instituto Cultural de Apoio às Artes , de Curitiba, publicou uma crônica de 2015 do maringaense Marcos Cordiolli (foto), responsável pela Siacom. Ele relata algumas lições de vida que aprendeu com uma pedinte, num diálogo incidental, que abordava carros numa manhã de dezembro. Confira:


TINHA UMA PEDINTE NO MEIO DO CAMINHO

Certo dia de um dos meus dezembros, pela manhã, caminhei por um itinerário diferente e deparei-me com uma pedinte. Uma senhora bem idosa. Eu sempre a via pelas esquinas do Alto São Francisco. Naquela época, eu cultivava o hábito, durante as caminhadas, de parar numa panificadora, para uma Média, de café e leite, com pão na chapa. A pedinte voltou-se para mim com a tradicional solicitação de ajuda. Ou acho que foi, pois ela já não parecia ter mais forças, nem sequer para falar de força adequadamente audível… A força que lhe restava estava no olhar profundamente triste. Eu dei os R$ 10 que tinha. Ela me olhou de novo e disse: “os teus olhos têm tanto futuro”. Eu não sei ao certo se ela fez referência ao tempo de vida ou vida intensa, eventualmente, por vir. Eu agradeci. E disse que ela era uma lição para mim. Disse apenas isto, mas sempre que eu a via, não conseguia imaginar vida mais miserável. Ainda mais por viver com os punhados de moedas que sobravam dos motoristas parados por imposição do semáforo. Era desta resistência que fazia dela uma referência para mim.

Ela olhou novamente nos meus olhos e com alguns fiapos de voz disse algo como: “a vida da gente é muito difícil, mas fica pior quando temos mágoa da vida”. Eu acho que vi uma lágrima nos olhos fortes, porém cansados dela. Ela, então, me chamou de filho e disse: “a mágoa é mais dura até que a solidão”. E disse algo intrigante: “a morte é engraçada, ela te espera com calma. Tem uns que querem morrer, mas ela não vem. E tem outros cheios de vida que ela [a morte] vem correndo e leva sei lá para onde…” Como o discurso dela era articulado, perguntei se ela tinha estudado. Ela disse que foi normalista do Instituto de Educação Discretamente procurei mais algum dinheiro nos bolsos, mas não tinha mais nada. Ela continuou olhando nos meus olhos. E continuou falando como um oráculo: “meu filho, a nossa vida é só perdas. Só que uns perdem mais que outros.” E arrematou: “segue teu caminho que eu vou rezar por você. Deus nunca ouviu nenhuma reza minha, mas eu não deixo de rezar’. Eu a abracei. Dei-lhe um beijo na testa. E segui.

Um pouco à frente voltei a olhá-la. Ela tinha voltado a abordar os carros, mas os olhos delas voltaram a me olhar. E pareceu-me que ela havia sonido. Não sei ao certo se era sorriso ou minha vontade que ela sorrisse. Retornei mais cedo da caminhada, pois cancelei o lanche na panificadora. Ela não estava mais naquela esquina de sempre. Ela seguiu seu caminho com as suas perdas e eu segui o meu com as palavras que ganhei dela. Algumas situações na vida eu desisti de entender, apenas limito-me a reconhecer que existem. Boas ou más. A vida da senhora segue. A minha também, espero que longa e intensa, como ela leu em meus olhos.

Verão de 2015.