Joelma, 49 anos

Uma história que não se apaga…

Numa sexta-feira, 1º de fevereiro de 1974, nublada e com muito vento no centro de São Paulo, um curto circuito no 12º andar causou o incêndio que destruiu o prédio, matou 188 e deixou mais de 300 feridos

Os lábios se tocavam, mas a voz não saía. O capitão percebeu que pelo movimento da boca, ela queria dizer: “Não me deixe morrer”. Uma moça que ele tirara do vão entre o telhado e a laje. Na cobertura dos 25 andares, debaixo das telhas de amianto que recobriam o piso de concreto havia vários corpos. Alguns agonizavam. Caso daquela moça. “Infelizmente, por ela, não pude fazer nada”, disse, com os olhos marejados, o então capitão do Corpo de Bombeiros de São Paulo, Augusto Carlos Cassaniga, em entrevista a um canal de televisão.

A cena ocorreu no incêndio do Edifício Joelma, em 1º de fevereiro de 1974. Uma sexta-feira nublada, com muito vento e a tradicional garoa que rendeu fama a São Paulo. Por volta das 8h45, um curto circuito no 12º andar deu origem ao fogo.

O tamanho da tragédia refletia o caos nas ruas vizinhas ao prédio. Mais de 8 mil pessoas se concentraram na rua Santo Antônio, próxima da Avenida Nove de Julho, no centro de São Paulo. Ambulâncias, carros dos bombeiros, voluntários, parentes de vítimas e curiosos, muitos curiosos. Impulsionado pelo vento, o fogo se alastrava prédio acima. Divisórias de madeira, carpetes no piso e cortinas nas janelas alimentavam as chamas, torrando tudo. Especialistas calcularam que a temperatura no interior do prédio chegara a mil graus, estourando os vidros das janelas e se espalhando pelos andares. No prédio havia três elevadores. Os dez primeiros andares destinados a garagens não foram atingidos.

Sem treinamento para enfrentar situações de emergência, as cerca de 600 pessoas que estavam no prédio, funcionárias do antigo Banco Crefisul, ficaram perdidas. No começo do fogo, muitas escaparam pelos elevadores. A escada de emergência se transformou num canudo de fumaça, sufocando os que tentavam fugir por ali. Uma ascensorista salvou algumas dezenas. Mas na última subida, a energia acabou. As chamas atingiram o elevador, carbonizando-a.

Mesmo destino de 13 pessoas que estavam nos andares superiores e tentaram descer pelo elevador. Mas a parte elétrica queimou, travando-o. O fogo o alcançou, derretendo tudo. Ao perceberem que não seriam salvas, morreram abraçadas. A alta temperatura fundiu os corpos com o metal do elevador e a parede. Alguns desapareceram. As cinzas humanas que sobraram podem ter sido levadas pela água jogada pelos bombeiros. Corpos reduzidos a quase nada não foram identificados. Não havia exames de DNA.

Entre os 188 mortos na tragédia, as chamadas 13 almas ganharam repercussão. A Prefeitura de São Paulo e a diretoria do Crefisul prepararam um terreno no Cemitério São Pedro, da Vila Alpina. O sepultamento em vários carros atravessou a capital paulista, um dia após o incêndio. No local, há uma capela e as 13 covas simples, que viraram motivo de peregrinação. Faixas com agradecimentos de milagres são fixadas no muro que cerca o espaço. Na entrada, uma placa de bronze com os dizeres: “As 13 almas – somente Deus conhece seus nomes. Descansem em paz, falecimento: 02 de fevereiro de 1974”.

Os bombeiros fizeram o possível para resgatar os que estavam no prédio. O capitão Cassaniga, naquele dia, estava de folga. Ao saber do incêndio, pôs seu uniforme e se dirigiu ao prédio da Câmara Municipal de São Paulo, cujo terraço servia de heliporto para os resgates. O comandante Hélio Barbosa Caldas lhe disse que precisava de um voluntário para descer no terraço do Joelma. Naquele local, um grupo de pessoas fazia uma espécie de corrida da morte. O vento incessante empurrava as labaredas de um lado, elas corriam para outro. Alguns haviam pulado; outros ameaçavam. Na rua, faixas enormes, estampavam: “Não pulem”.

O comandante o alertou que não era obrigado a ir, pois poderia ser uma missão sem volta. Cassaniga não recuou. Subiu no helicóptero sem roupa especial e rádio de comunicação. Com dificuldade, a aeronave rompeu a fumaça planando uns cinco metros, no meio do terraço. O capitão saltou. Os pés tocaram o meio de uma telha, partindo-a. “Senti que havia me ferido, mas apertei a bota e segui em frente”, contou. As pessoas desorientadas corriam das labaredas. Ele percebeu que se as reunisse no meio do terraço, teriam chances de se sobreviver. “Gritei mais alto do que elas, que obedeceram se reunindo no centro daquele espaço”. Vários que estavam embaixo das telhas já haviam morrido, caso da moça que mexia apenas os lábios. A ação, no entanto, acalmou os que corriam e ninguém mais saltou para a morte. Helicópteros chegaram e conseguiram resgatar mais de 80 pessoas.

Entre as cenas de horror, uma se destoava. Um homem ficou por mais de duas horas sentado no parapeito de uma pequena sacada no 19º andar cercado pelo fogo. Rolf Victor Heuer até fumou alguns cigarros, como se uma brasa a mais não fizesse diferença entre tanto fogo. Após ser resgatado, disse que tinha certeza de que o incêndio seria dominado, e seria salvo pelos bombeiros. Não teve a mesma sorte uma mãe que saltou para a morte agarrada ao filho de um ano e meio. A confusão era tanta que rapidamente jogavam pedaços de lona em cima dos corpos que despencavam, imaginando estarem mortos. A mãe morrera, mas dali a pouco, ouviram o choro da criança, que havia sobrevivido.

Falta de equipamentos e falhas na segurança prejudicaram o trabalho dos bombeiros. A caixa de água do Joelma com 40 mil litros estava com os registros travados, sem condições de uso. O comandante do Corpo de Bombeiros de São Paulo, em 1974, coronel Jonas Flores, em entrevista a um canal do YouTube, relembrando o caso, confirmou as dificuldades. A escada magirus alcançava até o 11º andar. Mesmo com o incêndio do Edifício Andraus, em 24 de fevereiro de 1972, que matou 16 pessoas, a prevenção não melhorou. Após a tragédia do Joelma, felizmente, a segurança dos prédios mudou. A Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA) ganhou autonomia. A fiscalização ficou mais rígida, evitando incêndios iguais aquele, cujas lembranças ardem.

Terreno foi palco de “crime do poço”

Não faltam episódios de assombrações e sobrenaturais sobre o Joelma, atual Edifício Praça da Bandeira. Numa pesquisa no Google se descobrem vários casos. A tragédia rendeu um filme “Joelma: 23º andar”, com Beth Goulart. Tema de livros e talvez um dos assuntos brasileiros com mais vídeos no YouTube. Dizem que no terreno onde o prédio foi construído tinha um cemitério indígena, descoberto na fundação de São Paulo. Não se sabe se de fato existiu, mas o local foi palco de um crime que ficou na história.

Numa casa que existia no terreno em que o Joelma foi construído morava um professor de Química e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP). Paulo Ferreira Camargo, 26 anos. Com ele moravam a mãe e duas irmãs. Dizem que era solitário e pouco namorador, mas teria se apaixonado por uma enfermeira que trabalhava na USP. A mãe e as irmãs ouvindo conselho dos vizinhos reprovaram a união porque ela não era virgem. Naquele tempo era motivo de desonra.

As pressões teriam feito Camargo terminar o namoro com a enfermeira. Ressentido, teria passado a andar armado e a discutir por causa de coisas banais. Ele furou um poço seco no fundo de casa. Numa noite, matou a mãe e as duas irmãs, pôs capuz nos corpos, jogou-os no poço e cobriu com terra.

Nas investigações, a polícia chegou até ele. Após interrogá-lo, pelos indícios resolveram fazer uma escavação no quintal. Antes de eles perfurarem o local do poço, Camargo pediu para ir ao banheiro. Ao adentrar no recinto, pegou um revólver que guardava num armarinho e deu um tiro no peito. Um dos policiais que desceram ao poço para tirar os corpos, morreu dias depois de uma infecção cadavérica contraída no local. A morte das mulheres, do professor e do policial ficou conhecida por “crime do poço”.


(*) Donizete Oliveira, jornalista e historiador. Confira outras reportagens no site O Repórter Andarilho.

Foto: Eivind Molberg/Folhapress