Da guerra ao sertão… Os dois mundos de Elisa

Pioneira de 98 anos, que fugiu dos bombardeios da Segunda Guerra Mundial e enfrentou a crise econômica e social que se seguiu ao fim do conflito, trocou a arrasada Itália pelos sertões de outrora, conviveu com mato, barro, poeira, calor e mosquitos na zona rural de Paiçandu, onde mora até hoje

Uma jovem professora acordava com os primeiros raios de sol e seguia de bicicleta por uma estrada rural, na província de Vicenza, na Itália. Às vezes, tinha de se esconder no mato para fugir dos aviões que sobrevoavam o local. Acostumavam metralhar quem encontrassem pelo caminho. Os bombardeios nas cidades eram constantes. Muita gente se refugiava em abrigos subterrâneos.

A Segunda Guerra Mundial arrasava a Itália. Em meio ao caos vivia a professora Elisa Milan Zanin. Por pouco a família dela não foi atingida. Um avião despejou uma bomba num imóvel ao lado da casa em que moravam. Por sorte, no momento, não havia ninguém no local. Driblar a morte era rotina. Muitas vezes, não dava certo; o pior acontecia.

Elisa e o cachorrinho Pepe,  que a acompanha pela imensa casa em que mora, construída na década de 1950

Uma cena que lhe ficou na memória foi a morte de um grupo de militares. Eles percorriam numa carruagem utilizada pelo exército. Veio o toque de recolher. Em instantes, um ronco nos céus. Aviões bombardeavam a cidade. Elisa se refugiou em um abrigo subterrâneo. Após o bombardeio, retornou à rua e viu pedaços dos animais, da carruagem e dos ocupantes. “Que horror”, recorda-se.

Mas tudo tem fim. A guerra também. Contudo, ficaram as sequelas. A economia italiana desandou. Fome e desemprego, entre outras mazelas sociais. Elisa se casara com o engenheiro agrônomo Vitório Zanin. A fuga da crise e o espírito aventureiro os puseram a caminho do Brasil, onde chegaram em 1950. A primeira morada foi em Sertaneja, a 32 quilômetros de Cornélio Procópio. Vitório veio trabalhar em Paiçandu e com ajuda de um amigo instalou uma serraria no município.

Acabados o pavor dos bombardeios e as dificuldades geradas pela crise econômica, os desafios eram outros. Barro, poeira, mosquitos, calor e mato a perder de vista. O casal foi morar numa casinha de madeira nas margens do rio Bandeirante. Em 1952, Vitório começou a construir a serraria que mais tarde tinha 25 funcionários. No local, moravam 15 famílias. A energia vinha de uma pequena usina que ele instalara no rio.

A serraria que Vitório, marido de Elisa, construiu em Paiçandu, vendia madeira plainada para São Paulo, Curitiba e Santa Catarina

Ele vendia madeira plainada para São Paulo, Curitiba e Santa Catarina. A maioria era utilizada na fabricação de dormentes para estrada de ferro, assoalho e taco de construção. As dificuldades davam-se por causa das distâncias e da precariedade das estradas. Às vezes, nem jipe cortava o lamaçal vermelho que se fazia. “Com chuva, os carros ficavam presos, atrasando as viagens”, conta Elisa.  

Contudo, a serraria engrenou e, em 1953, Vitório iniciou a construção da casa de madeira onde Elisa mora até hoje. Projetada por um engenheiro italiano, a casa de 12 cômodos é uma relíquia da Vila Pasubio, na Gleba Bandeirante, zona rural de Paiçandu. Homenagem ao monte italiano que tem o mesmo nome. “Devagar fomos nos adaptando à vida aqui, que era muito diferente da Itália, mas as amizades nos ajudaram”, afirma Elisa, nascida em 14 de setembro de 1925, na província italiana de Vicenza.

Daí em diante, a vida do casal estabilizou-se. Com a escassez de madeira na região, a serraria acabou em 1965. Vitório, que morreu em 1992, era inquieto e sempre recorria a novos afazeres. Ele notou que havia muitos pedaços de couro descartados nas beiras das estradas. Começou a aproveitá-los e, com o tempo, surgiu o curtume da família Zanin. O negócio cresceu e funcionou por muitos anos, mas encerrou as atividades com a concorrência da China.

Mãe de Marcela, engenheira civil; Gisella, engenheira química e Marcos, administrador de empresas, que cuida dos negócios da família. Avó de dois netos e bisavó de três bisnetos. Os cachorros a acompanham. A cachorrinha Lia, que não desgrudava dela, morreu, mas o Pepe a substituiu. Ele não sai de perto da dona. Mas do lado de fora mais cachorros recepcionam os visitantes. Aliás, eles são abundantes na Vila Pasubio e, aos bandos, passeiam entre árvores.  

O convite para um café propicia uma vista do interior da casa. Quase um museu, tamanha a quantidade de objetos históricos espalhados pelos cômodos. Os móveis foram feitos por Nestor Ponciano, sob encomenda. Dono da antiga loja A Caprichosa, na Vila Operária, em Maringá. Cada objeto tem uma história, uma lembrança. “A maioria está com a gente desde o começo, portanto, faz parte da nossa trajetória”, diz.  

Apenas os jipes venciam o barro da terra vermelha que se formava nas estradas da zona rurais, iguais a esta que até hoje dá acesso à casa de Elisa, na zona rural de Paiçandu

Em meio a tantas relíquias, estão alguns artefatos indígenas que Elisa encontrou na propriedade. Cuias de barro, pontas de flecha e mãos de pilão dividem espaço com lembranças de viagens e até um pequeno sino centenário que veio da Itália. “Guardo tudo por amor à história”, declara ela, que aponta para os antigos livros de registros de empregados da serraria. “Sempre aparece alguém querendo ver alguma coisa para aposentadoria e aqui está”.  

Elisa, quase centenária, está consciente. Se desloca amparada por um andador, mas não lhe falta memória. Fala da sua vida na Itália, dos primeiros anos no Brasil. Até pouco tempo, ela preparava as refeições da casa, tratava dos animais e arrumava tempo para pintar e costurar. Ela se empolga ao falar do extenso quintal.

Não faltam árvores antigas como um pau-ferro de mais de 100 anos. De galhos imensos e tronco enorme. Uma das mais antigas da propriedade de 35 alqueires. Há alguns anos, um professor alemão acompanhado de intérprete a visitou. Ele queria conhecer árvores que pertenciam à floresta que outrora havia na região. Se espantou ao ver a imensa riqueza ambiental.

Eis os dois mundos de Elisa…


Texto e fotos: Donizete Oliveira; fotos antigas: arquivo pessoal