Missão cumprida

“Seu” Ângelo detinha como poucos a capacidade de ouvir pacientemente o interlocutor, reconhecer suas eventuais demandas e então emitir com precisão seus conceitos sobre o tema debatido

Apenas duas palavras. Sucintas. Concisas. Explicitamente simples, mas de uma densidade desconcertante. Olhando assim meio de soslaio, poder-se-ia discorrer sobre o significado dessa junção gramatical por algumas dezenas de páginas e ainda restariam outras tantas, a depender do ponto de vista do observador. Mais ainda se o destinatário dessas páginas da vida tiver sido contemplado com incríveis 101 primaveras. Pois esse agraciado chama-se Ângelo Martins Lopes.

Paulista de nascimento, marialvense por adoção, “Seu” Ângelo desembarcou nessas terras vermelhas e promissoras no fim da década de 1940, com a coragem inabalável e a esperança em construir seu futuro com muito trabalho e dignidade. Sua missão terrena foi finalizada no dia 21 de setembro de 2024, quando o último pioneiro daquela leva de destemidos partiu para sua derradeira viagem. Deixou um inestimável legado aos descendentes, que herdaram a honestidade e a retidão de caráter de um cidadão de bem, sentimentos que nortearam sua conduta por mais de um século.

Sua primeira carteira de habilitação foi emitida em 1944 e está perfeitamente preservada, uma prova incontestável da resiliência de um cidadão comum, obstinado em direcionar positivamente seu próprio destino. Naquela época, o chofer obrigatoriamente deveria dominar habilidades específicas, uma vez que os veículos não dispunham dos recursos atuais. A direção “queixo-duro”, a caixa de transmissão do tipo “câmbio seco”, os freios sem a assistência hidráulica e outras particularidades desafiavam os calouros do volante. Essas intercorrências pontuais não intimidaram o jovem arrojado, que enfrentou poeira, lama e todo tipo de dificuldades nessa região ainda inóspita do Paraná, onde constituiu família e molhou a terra abençoada com o suor de seu trabalho.

O homem simples, de fala mansa e pausada, que exalava simpatia, do alto de sua experiência adquirida ao longo da profícua vida, fazia questão de exibir a todo o momento a exuberância de seu mais evidente atributo: o respeito incondicional ao próximo. Detinha como poucos a capacidade de ouvir pacientemente o interlocutor, reconhecer suas eventuais demandas e então emitir com precisão seus conceitos sobre o tema debatido. Essa característica peculiar em sua personalidade tinha o poder de cativar e aglutinar pessoas das mais distintas índoles e faixas etárias, que enxergavam naquele cidadão esguio e impregnado de sabedoria, a essência do equilíbrio, da serenidade e da razão. Durante oito anos integrou e incentivou a Orquestra Raiz Sertaneja de Marialva, um grupo coeso que se propunha a divulgar a música sertaneja de raiz, com apresentações em todas as regiões do estado.

No ano de 2014 foi homenageado pela Câmara Municipal de Marialva com o título de Cidadão Honorário, um merecido reconhecimento por sua inquestionável trajetória de vida. “Seu” Ângelo superou com perseverança os desatinos da vida, mostrando que o trabalho honesto e a conduta reta são itens de porte obrigatório. E que esses requisitos, elementos imprescindíveis para se moldar o caráter de um cidadão de bem, devem acompanhar aqueles que buscam preservar os valores morais estratificados na sociedade. Meu velho amigo foi atender aos desígnios divinos, como todos, invariavelmente iremos algum dia. Restam as lembranças e os bons exemplos, esses indeléveis ao tempo. Missão cumprida, “Seu” Ângelo! Esteja com Deus!


(*) José Luiz Boromelo, escritor e cronista em Marialva/PR