A memória gustativa e as lembranças do passado

Os registros fotográficos preservados infelizmente não transmitem os aromas da infância

Um ditado muito antigo sugere que “relembrar o passado é sofrer duas vezes”. O adágio popular poderia lá ter seu fundo de verdade, mas somente para lembranças não tão agradáveis. Revendo fotografias antigas, a maioria delas em preto e branco, voltamos ao passado em mais de meio século. E inevitavelmente a memória gustativa se sobressai, por conta da variedade de alimentos que os habitantes do meio rural tinham à disposição. Como não havia eletricidade, tudo era consumido em curto espaço de tempo, pela dificuldade em se preservar alimentos perecíveis. Isso incluía malabarismos diários e uma dose extra de criatividade das matriarcas, uma vez que as famílias, geralmente numerosas, demandavam quantidades razoáveis de comida para atender as necessidades de uma mesa repleta de pratos.

Além da alimentação variada de excelente qualidade produzida na propriedade, os rebentos tinham responsabilidades específicas de acordo com a faixa etária, mas de todos indistintamente se exigia o cumprimento de obrigações coletivas: levantar cedo todo santo dia, respeitar os mais velhos, tratar cordialmente os visitantes, frequentar a missa aos domingos e gastar a sola da botina no caminho da escolinha rural, onde a professora fiscalizava o asseio do guarda-pó, o capricho com o material escolar, o comportamento em sala de aula e o aprendizado.

Tudo isso ficou no passado, mas é gratificante relembrar a forma como as pessoas se adaptavam às contingências da época, usufruindo ao máximo do potencial de cada alimento. Assim como o incomparável sabor de uma carne suína conservada na lata de alumínio, imersa em banha e que durava meses. Ou o salame e a linguiça defumados na fumaça de pó de serra; o frango caipira com polenta que a “nona” cozinhava na panela de ferro em um fogão a lenha; o macarrão e o nhoque, iguarias muito apreciadas pelos descendentes de italianos; os ovos de galinha caipira com suas gemas de coloração avermelhada, uma proteína versátil de preparo rápido; o delicioso queijo fresco, que a molecada degustava com prazer; o pão caseiro saído quentinho do forno, que fazia derreter a abundante camada de manteiga caseira; o pão de ló fofinho; o pé-de-moleque, o suspiro, a pamonha e o curau, o caldo de cana; as rapaduras com amendoim ou jaracatiá, um energético natural e imediato. As bolachas de formatos diversos e cujos ingredientes principais incluíam leite, farinha de trigo e ovos, tudo produzido no sítio.

As frutas eram um capítulo à parte na vida daqueles que molhavam a terra abençoada com o suor de seu trabalho. As hortas e os imensos pomares recebiam fertilizantes naturais provenientes dos animais. As frutas cítricas como laranja, tangerina, mexerica e limão produziam o ano todo. Havia ainda ameixa, goiaba, caqui, amora, mangas de diferentes variedades; banana, carambola, pitanga, abacate, araticum, graviola, uva, jaca, gabiroba, maracujá, jabuticaba, mamão, araçá, enfim, uma fartura ao alcance de todos.

Os registros fotográficos preservados infelizmente não transmitem os aromas da infância. Certamente esses alimentos ainda produzem seus odores característicos, mas não carregam mais o simbolismo das dificuldades vivenciadas no passado. Fragrâncias, texturas, cores e sabores transcendem a capacidade de compreensão pelos conectados jovens da atualidade. A modernidade galopante confiscou a maior parte das percepções sensoriais do ser humano. Vivemos uma época em que os valores de outrora são simplesmente ignorados. Resta seguir em frente, portanto. Feliz de quem tem suas histórias para contar.


(*) José Luiz Boromelo, escritor e cronista em Marialva/PR

Foto: Kalus Nielsen/Pexels