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O pão da mãe

Do padre Orivaldeo Robles:
Tenho certeza de que não vão acreditar. Dirão que é lorota. Mas aconteceu. Assim, de repente, sem prévio aviso. Vinha eu pela rua, como todos os dias, pelo caminho de sempre, quando me entrou forte pelas narinas um cheiro de pão recém-saído do forno. “Grande coisa“, dirá a meia dúzia dos gentis leitores que, todo sábado, me procura neste espaço. “Seu percurso diário passa por duas panificadoras”. Talvez eu não me tenha explicado direito. Já vai para três anos que percorro as mesmas avenidas e ruas. Conheço todos os seus cheiros. Sei identificá-los muito bem. Não estou falando de nenhum desses. Refiro-me a outro, absolutamente único, que eu não confundiria de jeito nenhum. Já deixei de senti-lo faz uns vinte anos, desde quando as condições de saúde da mãe pioraram e lhe impediram o exercício de uma tarefa que ela executava como ninguém. Não poder mais amassar seu pão foi para ela uma dolorosa prova e para nós, uma perda irreparável.
Perdoem-me os que acreditam conhecer o sabor do pão feito em casa. Não imaginam até onde ele pode chegar. Quem não provou o pão da minha mãe nunca saberá qual o genuíno gosto do pão caseiro. Foi desse pão, é verdade, do pão da mãe, que senti o cheiro, quando eu vinha pela rua. Pena que tenha ficado numa sensação fugaz. Durou um instante e sumiu. Mas não há possibilidade de engano. Pão nenhum teve esse aroma. Nem igual sabor.
A mãe era mulher de mui parco saber, de conhecimento quase nenhum. Analfabeta, criada na roça, num tempo em que mulher não precisava saber ler nem escrever. Montou com sacrifício o acervo de suas práticas e conhecimentos da vida do campo. Fez-se especialista no que denominavam prendas domésticas. Foi daquelas de nunca aceitarem menos do que o melhor. Repassou-nos a mesma preocupação. Ela viveu em outra época. Não se ajustaria a este mundo nosso de mediocridade e aparência. Hoje, seria uma pessoa chata, incômoda.
Foi hábil no comando do fogão e do forno, praia das mulheres do seu tempo. Aí todas tinham dever de brilhar. Sem direito de receber reconhecimento nem aplauso. Pelo menos em três artigos (não sei como) ela atingiu rara habilidade. No manjar branco com calda de coco, no pudim de leite com queijo ralado e, mais que tudo, no pão feito em casa eu ousaria dizer que ela chegou bem perto da perfeição. Em todo o lugar para onde mudávamos – pobre muda mais que formiga correição – o pai se esforçava para, com admirável habilidade, construir um forno. Porque sem um forno apropriado, ali no quintal, pão nenhum sai bom. E o da mãe merecia o melhor forno da sua competência. Tanto ele apreciava a arte panificadora de sua mulher que, na véspera da morte, no leito do hospital, me pediu: “Me traz um pedaço do pão da tua mãe”. Levei-lhe duas generosas fatias com mortadela. Pelo menos com esse desejo ele não morreu.
Mas por que estou, feito velho surdo, falando sozinho de um passado que quase ninguém conheceu? É que o comércio não cansa de anunciar o Dia das Mães. O que me traz profunda estranheza. Estamos tratando da mesma pessoa? Mãe lembra gratuidade. Comércio evoca lucro. Pouco lhe importa a mãe. Interessa-lhe a venda do presente.
Houve tempo em que mãe não contava com ganhar presente. Outros valores ocupavam seu coração e atendiam seus anseios. Como a vida, dom fundamental, nutrido no pão partilhado. Para amassá-lo, com a farinha ela misturava trabalho, pobreza, cansaço e entrega de si. E colhia o sorriso repartido num reino chamado família. Não existia o Dia das Mães. Mas a mãe estava presente o ano inteiro.

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