De João Guido: Praquê que enfiaram na cabeça dele aquela idéia de se mandar do seu chão de nascença? Quinzim Bitu não era rico, não era. Os quinze alqueires num fundão da Paraíba, uma área do brejo, plantando dava: A mulher Otaviana ajudando a capinar e colher, os cinco filhos sobrevividos já pegando no cabo da enxada, o mais velho com vinte, o caçula com 12, no meio Tiquita pensando em casamento. Rico não era o Quinzim Bitu. Comia fartura, as colheitas e as carnes que vendia faziam sobrar algum para a roupa nova dos dias de romaria, a família gorda e sossegada. Enfiaram na cabeça dele a notícia de que no sul a vida era muito melhor. Tinha conforto, tinha modernice, tinha alegria, tinha chiqueza, tinha carnaval, futebol, emprego fácil, dinheiro farto. Quinzim vendeu seu chão de nascença e se mandou de caminhão, de trem, desceu em São Paulo. Só sabia capinar, plantar, colher, não conseguiu emprego. Nem documento em ordem ele tinha. A patroa e os filhos na pensão, entrou ladrão, se foi seu rico tesouro, o produto da venda do sítio. Ficou Quinzim sem terra e sem dinheiro. Os meninos foram pedir ajutório na rua, prenderam eles. Quinzim e Dona Otaviana foram buscar, prenderam eles também, acusados de vadios. Soltos depois, ganharam passes de trem para seguir viagem. Até o fim da linha, Maringá. Um agenciador de peões pagou comida e dormida, levou a família toda pra lavoura, colher café. O filho mais velho ficou duas semanas, sumiu, tempos mais tarde apareceu o retrato dele nos jornais, virara bandido. A filha casadoira ficou três meses, fugiu, tempos mais tarde foi vista na zona. Quinzim Bitu, Dona Otaviana e os três filhos restantes carpindo café, sobrevivendo. Geou na lavoura, o dono transformou tudo em pasto, botou os empregados na estrada, sem indenização, sem pedir desculpas, sem dó no coração. Quinzim se encostou na favela trabalhando de bóia-fria, a mulher lavando roupa, os filhos não agüentaram, se mandaram, ninguém mais ficou sabendo o paradeiro deles. A menina mais nova e dois meninos. Dona Otaviana pegou tuberculose, dois meses no sanatório, voltou melhorzinha. Quinzim chamou ela para tentarem a vida no Mato Grosso, lá estavam oferecendo bons salários, ele iria derrubar mato, ela bastava cozinhar pra não se esforçar muito, tadinha magrinha. Qualquer coisa seria melhor do que a vida que estavam desvivendo. Se foram. A pobre pegou malária, já fraquinha morreu. Viúvo, sozinho, Quinzim perdeu o gosto de lutar. Voltou numa carona de caminhão, como ajudante porque não podia pagar. Seus sessenta anos já pesavam muito, ainda mais sem mulher, e os filhos sumidos. Migrar pra mais que onde? Paraná não deu, Mato Grosso não deu, ir de novo pro norte pra quê? Sem terra, sem dinheiro, sem profissão, se pôs na rua pedindo esmola e bebendo pinga. – Esmolas não dou – era a resposta que mais ouvia – se quiser, pode pegar a enxada e carpir meu quintal, que lhe dou um prato de comida. – Enfia seu prato de comida no … – respondeu Quinzim num dia de mais raiva e mais desapego à boa-educação. Levou em troca um tabefe, que aliás nem doer doeu, tantos tebefus ele já levara da vida. Nos jornais a notícia: “Indigente atropelado na rodovia”. Era ele, Quinzim Bitu, identificado por um conterrâneo que por acaso passou’pelo necrotério, olhou o corpo dele finalmente em paz, nem chorou. – Até já, companheiro. Me espera lá em cima, que vou logo também. Lá a gente vai se encontrar com toda aquela turma que a génte viu descer do norte sonhando com riqueza fácil. Lá em cima dizem que tudo é pelo avesso: quem chora aqui, sorri lá em cima. Boa viagem, Quinzim Bitu, que desta vez você vai de verdade para uma melhor. Lembranças a todos os milionários do céu, ex-sofredores da terra. Logo-logo me vou também. Quinzim Bitu rico não era no fundão da Paraíba. Tinha o seu sítio na região do brejo, o milho, o feijão, as galinhas, os bacurins, a vidinha gorda e sossegada. Migrou, migrou, migrou, morreu para embarcar de carona na enxurrada das lágrimas de Dona Otaviana, na derradeira migração. Ago’ra sim, para uma vida-vida. Sem terra, sem dinheiro, sem profissão, mas cheinho de paz, os anjos alegres lhe dizendo boas-vindas. ___________ (*) Publicado na revista Aqui em fevereiro de 1980